🔓 Os imprescindíveis (2)

A literatura e seus agentes forjam nossos ideais de valores, de moralidade e da ética que nos permitem conviver em sociedade
Ilustração: Eduardo Mussi
01/04/2023

À cadeia produtiva e distributiva do livro, objeto dessa coluna no mês passado e que denominei de imprescindíveis, junto agora os outros elos dessa corrente da leitura: autores/as, mediadores/as, bibliotecários/as, professores/as.

Compartilho algumas reflexões sobre eles não apenas pela temática, mas porque nas últimas semanas intensificaram-se especulações diversas sobre a própria necessidade desses profissionais do livro e da leitura no mundo que está tentando configurar um futuro questionável.

O consumismo volátil da indústria cultural contemporânea e de alguns produtos oferecidos à educação como eficientes treinamentos de futuros trabalhadores está chegando ao limite da disruptura de valores e conceitos humanísticos, que são uma das últimas barreiras para o dilema dos últimos séculos: civilização ou barbárie.

O cenário do filme Blade Runner, que assisti angustiado em 1982, com personagens vivendo sob chuva ácida e cercados pela massa miserável das ruas e um estado policial onipresente na figura dos caçadores de “replicantes”, é apenas o pano de fundo de uma sociedade futura vítima de sua própria perda de valores públicos tragados por interesses privados, por detentores do poder que controlam máquinas sem alma e sem humanidade em um planeta devastado. O diretor Ridley Scott produziu, no cinema, uma reflexão referencial sobre o sentido da vida humana, de sua moral e de sua ética nos estertores do longo e cruento século 20.

O ano de 2019 é o tempo em que Blade Runner acontece mostrando a distópica cidade de Los Angeles como a síntese de um mundo já capturado pela barbárie. Uma expectativa premonitória que antecipou questões hoje debatidas universalmente pela academia e pela mídia.

Como não identificar no filme os sem-teto, os dependentes químicos, os corpos doentes que vagam por um espaço urbano em destroços, das cenas cotidianamente observadas nas principais metrópoles do país? Como não identificar a chuva ininterrupta, a névoa, a natureza sufocada que marca a ficção de Scott com as mudanças climáticas que provocam desastres ambientais cada vez mais intensos e frequentes? Como não identificar o olhar vazio, a desorientação, a ignorância dos homens e mulheres comuns que perambulam pelo espaço da distopia do filme com as multidões que hoje no Brasil estão ensandecidas e capturadas pelos falsários da terra plana, da criminalização da política e do elogio do individualismo egoísta que tenta matar o ideal do coletivo e de uma sociedade equânime? Como não enxergar nos manipuladores e financiadores desse caos, no filme representados pela empresa Tyrell Corporation, com o bando organizado de gângsteres que assaltam com seus colarinhos brancos as instâncias das corporações produtivas e financeiras, da política pública, dos poderes constituídos, atacando frontalmente os fundamentos do estado democrático de direito e perpetuando as desigualdades sociais na preservação de seus lucros financeiros imorais e improdutivos?

E, afinal, por que exponho todas essas mazelas para tratar dos imprescindíveis autores, professores, bibliotecários, mediadores de leitura? Por que recorro às analogias do nosso tempo com essa obra-prima e atemporal do cinema?

Talvez porque os escritores e escritoras, primeiro elo dessa corrente de formação sólida de cidadania e suas múltiplas formas de seduzir e formar leitores e leitoras, nos mostrem antecipadamente futuros que dificilmente enxergaríamos sem a criatividade, a sensibilidade e a arte desses “contadores de histórias”, desses arautos de nós mesmos, os seres humanos. Blade Runner tem na origem de seu roteiro cinematográfico a inspiração de um romance escrito em 1968 pelo norte-americano Philip K. Dick intitulado Androides sonham com ovelhas elétricas?.

A literatura em todos os seus gêneros — assim como a poesia, a escrita ficcional, os ensaios científicos que procuram compreender todas as ciências humanas e naturais — é essencial para nos compreendermos enquanto seres humanos. São essas “excentricidades”, como diria um obtuso neoliberal dos nossos dias, que forjam nossos ideais de valores, de moralidade e da ética que nos permitem conviver em sociedade. Quebrar a névoa da ignorância, que nos acompanhará a vida toda se não a desbravarmos com o conhecimento adquirido formal ou informalmente, é a possibilidade de se chegar a um patamar civilizatório que permita a vida sã e equânime num planeta ecologicamente sustentável.

Por isso que o primeiro elo dessa cadeia, a dos escritores, artífices da palavra, já nasce imprescindível. Mas que dizer dessas virtudes, ou o resultado delas, se seguirem encapsuladas no universo único de seus autores? O que é uma ideia, um poema, uma análise científica, um romance guardado a sete chaves, sem leitores? O ato social da escrita demanda seu compartilhamento. Se escrevemos para nós mesmos, numa jornada de autoconhecimento, como seres humanos o impulso para compartilhar se impõe e a marca do ser gregário que somos triunfa.

Por essa razão é que chamo de imprescindíveis não os indivíduos, mas o conjunto deles que torna possível que a palavra chegue à figura principal disso tudo: o leitor, a leitora. Apesar de, quando em cargos públicos, ter recebido muitas pressões para realçar a importância de um ou outro elo, todos são igualmente importantes e só se fortalecem quando harmônicos no ato de fomentar a leitura para todos e todas.

Para além do setor produtivo e distributivo, como pensar em democratizar a leitura sem a ação dos profissionais das bibliotecas de acesso público, sejam elas físicas ou digitais? Como fazer chegar os livros, em um país com recursos escassos, aos milhões de brasileiros que não conseguem ter acesso a este direito, hoje assegurado pela Lei 13.696, da PNLE, se não for por uma ação de política pública em favor da expansão e desenvolvimento das bibliotecas? E o que são as bibliotecas sem os seus profissionais compromissados politicamente com a formação cidadã de seus compatriotas? Reconhecê-los como imprescindíveis é o primeiro passo para valorizarmos o estratégico e essencial instrumento de formação cultural, educacional e de cidadania ao longo da vida que são as bibliotecas de acesso público.

Além dos profissionais bibliotecários há outra categoria de profissionais que desde a mais tenra infância dos seres humanos exerce papel fundamental na sua formação. Apesar das tentativas cada vez mais agressivas das lideranças políticas e empresariais, ávidas pela anulação de políticas que formam cidadãos integrais e pela avidez do lucro, a imprescindibilidade dos professores e professoras na formação integral do ser humano é ponto inquestionável para toda política que visa a construção de uma sociedade humana harmônica e sustentável. Apenas os que valorizam mais os gadgets modernosos do que as objetivos educacionais e culturais; apenas os que pensam que o ser humano precisa ser treinado e não formado; apenas os que se satisfazem com “coachs” e subestimam os professores; apenas aqueles que não entendem a educação como um processo sistêmico e de longa duração e sua absoluta cumplicidade com a cultura; apenas esses não reconhecem que investir e formar cada vez melhor nossos profissionais docentes, e dar a eles condições dignas de vivência, é investimento estratégico fundamental e vital para as sociedades.

Finalmente menciono os mediadores e mediadoras de leitura. O conceito é amplo, a diversidade de atuação desses agentes do bem comum é enorme e abrange muitas categorias profissionais, inclusive as que já citei. Mas também envolve voluntários, familiares, agentes culturais, de saúde, do poder judiciário, entre tantos outros. Sobre eles, os contadores de histórias, os espalhadores de poesia e encantamento com base nos livros, gostaria de ter um artigo inteiro só para eles. Cada vez me encantam mais e são companheiros para toda a vida, presentes nos mais inusitados territórios. Imprescindíveis!

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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