Ă€ cadeia produtiva e distributiva do livro, objeto dessa coluna no mĂŞs passado e que denominei de imprescindĂveis, junto agora os outros elos dessa corrente da leitura: autores/as, mediadores/as, bibliotecários/as, professores/as.
Compartilho algumas reflexões sobre eles não apenas pela temática, mas porque nas últimas semanas intensificaram-se especulações diversas sobre a própria necessidade desses profissionais do livro e da leitura no mundo que está tentando configurar um futuro questionável.
O consumismo volátil da indĂşstria cultural contemporânea e de alguns produtos oferecidos Ă educação como eficientes treinamentos de futuros trabalhadores está chegando ao limite da disruptura de valores e conceitos humanĂsticos, que sĂŁo uma das Ăşltimas barreiras para o dilema dos Ăşltimos sĂ©culos: civilização ou barbárie.
O cenário do filme Blade Runner, que assisti angustiado em 1982, com personagens vivendo sob chuva ácida e cercados pela massa miserável das ruas e um estado policial onipresente na figura dos caçadores de “replicantes”, Ă© apenas o pano de fundo de uma sociedade futura vĂtima de sua prĂłpria perda de valores pĂşblicos tragados por interesses privados, por detentores do poder que controlam máquinas sem alma e sem humanidade em um planeta devastado. O diretor Ridley Scott produziu, no cinema, uma reflexĂŁo referencial sobre o sentido da vida humana, de sua moral e de sua Ă©tica nos estertores do longo e cruento sĂ©culo 20.
O ano de 2019 Ă© o tempo em que Blade Runner acontece mostrando a distĂłpica cidade de Los Angeles como a sĂntese de um mundo já capturado pela barbárie. Uma expectativa premonitĂłria que antecipou questões hoje debatidas universalmente pela academia e pela mĂdia.
Como nĂŁo identificar no filme os sem-teto, os dependentes quĂmicos, os corpos doentes que vagam por um espaço urbano em destroços, das cenas cotidianamente observadas nas principais metrĂłpoles do paĂs? Como nĂŁo identificar a chuva ininterrupta, a nĂ©voa, a natureza sufocada que marca a ficção de Scott com as mudanças climáticas que provocam desastres ambientais cada vez mais intensos e frequentes? Como nĂŁo identificar o olhar vazio, a desorientação, a ignorância dos homens e mulheres comuns que perambulam pelo espaço da distopia do filme com as multidões que hoje no Brasil estĂŁo ensandecidas e capturadas pelos falsários da terra plana, da criminalização da polĂtica e do elogio do individualismo egoĂsta que tenta matar o ideal do coletivo e de uma sociedade equânime? Como nĂŁo enxergar nos manipuladores e financiadores desse caos, no filme representados pela empresa Tyrell Corporation, com o bando organizado de gângsteres que assaltam com seus colarinhos brancos as instâncias das corporações produtivas e financeiras, da polĂtica pĂşblica, dos poderes constituĂdos, atacando frontalmente os fundamentos do estado democrático de direito e perpetuando as desigualdades sociais na preservação de seus lucros financeiros imorais e improdutivos?
E, afinal, por que exponho todas essas mazelas para tratar dos imprescindĂveis autores, professores, bibliotecários, mediadores de leitura? Por que recorro Ă s analogias do nosso tempo com essa obra-prima e atemporal do cinema?
Talvez porque os escritores e escritoras, primeiro elo dessa corrente de formação sĂłlida de cidadania e suas mĂşltiplas formas de seduzir e formar leitores e leitoras, nos mostrem antecipadamente futuros que dificilmente enxergarĂamos sem a criatividade, a sensibilidade e a arte desses “contadores de histĂłrias”, desses arautos de nĂłs mesmos, os seres humanos. Blade Runner tem na origem de seu roteiro cinematográfico a inspiração de um romance escrito em 1968 pelo norte-americano Philip K. Dick intitulado Androides sonham com ovelhas elĂ©tricas?.
A literatura em todos os seus gĂŞneros — assim como a poesia, a escrita ficcional, os ensaios cientĂficos que procuram compreender todas as ciĂŞncias humanas e naturais — Ă© essencial para nos compreendermos enquanto seres humanos. SĂŁo essas “excentricidades”, como diria um obtuso neoliberal dos nossos dias, que forjam nossos ideais de valores, de moralidade e da Ă©tica que nos permitem conviver em sociedade. Quebrar a nĂ©voa da ignorância, que nos acompanhará a vida toda se nĂŁo a desbravarmos com o conhecimento adquirido formal ou informalmente, Ă© a possibilidade de se chegar a um patamar civilizatĂłrio que permita a vida sĂŁ e equânime num planeta ecologicamente sustentável.
Por isso que o primeiro elo dessa cadeia, a dos escritores, artĂfices da palavra, já nasce imprescindĂvel. Mas que dizer dessas virtudes, ou o resultado delas, se seguirem encapsuladas no universo Ăşnico de seus autores? O que Ă© uma ideia, um poema, uma análise cientĂfica, um romance guardado a sete chaves, sem leitores? O ato social da escrita demanda seu compartilhamento. Se escrevemos para nĂłs mesmos, numa jornada de autoconhecimento, como seres humanos o impulso para compartilhar se impõe e a marca do ser gregário que somos triunfa.
Por essa razĂŁo Ă© que chamo de imprescindĂveis nĂŁo os indivĂduos, mas o conjunto deles que torna possĂvel que a palavra chegue Ă figura principal disso tudo: o leitor, a leitora. Apesar de, quando em cargos pĂşblicos, ter recebido muitas pressões para realçar a importância de um ou outro elo, todos sĂŁo igualmente importantes e sĂł se fortalecem quando harmĂ´nicos no ato de fomentar a leitura para todos e todas.
Para alĂ©m do setor produtivo e distributivo, como pensar em democratizar a leitura sem a ação dos profissionais das bibliotecas de acesso pĂşblico, sejam elas fĂsicas ou digitais? Como fazer chegar os livros, em um paĂs com recursos escassos, aos milhões de brasileiros que nĂŁo conseguem ter acesso a este direito, hoje assegurado pela Lei 13.696, da PNLE, se nĂŁo for por uma ação de polĂtica pĂşblica em favor da expansĂŁo e desenvolvimento das bibliotecas? E o que sĂŁo as bibliotecas sem os seus profissionais compromissados politicamente com a formação cidadĂŁ de seus compatriotas? ReconhecĂŞ-los como imprescindĂveis Ă© o primeiro passo para valorizarmos o estratĂ©gico e essencial instrumento de formação cultural, educacional e de cidadania ao longo da vida que sĂŁo as bibliotecas de acesso pĂşblico.
AlĂ©m dos profissionais bibliotecários há outra categoria de profissionais que desde a mais tenra infância dos seres humanos exerce papel fundamental na sua formação. Apesar das tentativas cada vez mais agressivas das lideranças polĂticas e empresariais, ávidas pela anulação de polĂticas que formam cidadĂŁos integrais e pela avidez do lucro, a imprescindibilidade dos professores e professoras na formação integral do ser humano Ă© ponto inquestionável para toda polĂtica que visa a construção de uma sociedade humana harmĂ´nica e sustentável. Apenas os que valorizam mais os gadgets modernosos do que as objetivos educacionais e culturais; apenas os que pensam que o ser humano precisa ser treinado e nĂŁo formado; apenas os que se satisfazem com “coachs” e subestimam os professores; apenas aqueles que nĂŁo entendem a educação como um processo sistĂŞmico e de longa duração e sua absoluta cumplicidade com a cultura; apenas esses nĂŁo reconhecem que investir e formar cada vez melhor nossos profissionais docentes, e dar a eles condições dignas de vivĂŞncia, Ă© investimento estratĂ©gico fundamental e vital para as sociedades.
Finalmente menciono os mediadores e mediadoras de leitura. O conceito Ă© amplo, a diversidade de atuação desses agentes do bem comum Ă© enorme e abrange muitas categorias profissionais, inclusive as que já citei. Mas tambĂ©m envolve voluntários, familiares, agentes culturais, de saĂşde, do poder judiciário, entre tantos outros. Sobre eles, os contadores de histĂłrias, os espalhadores de poesia e encantamento com base nos livros, gostaria de ter um artigo inteiro sĂł para eles. Cada vez me encantam mais e sĂŁo companheiros para toda a vida, presentes nos mais inusitados territĂłrios. ImprescindĂveis!