A notĂcia da decretação de falĂŞncia da livraria Cultura, aparentemente encerrando um longo processo judicial que levantou contĂnua polĂŞmica no setor editorial e livreiro, com diferentes leituras das razões que levaram Ă perda de mais uma livraria de referĂŞncia num paĂs que Ă© muito pobre neste quesito, me fez pensar novamente no difĂcil cenário em que se move este setor há muitos anos.
Como estou desde o final dos anos 1970 no mundo editorial, Ă© inevitável nĂŁo invocar o incontável contingente de homens e mulheres envolvidos com o fazer do livro. Os chamo de imprescindĂveis e eles e elas fazem parte da minha longa estrada pelo mundo do livro e da leitura. Pelo espaço dessa coluna, deixarei de comentar vários segmentos que fazem parte dessa cadeia que produz conhecimento vital, lĂşdico e cientĂfico. NĂŁo comentarei os outros imprescindĂveis: autores, bibliotecários, mediadores de leitura, professores, e me fixarei na cadeia produtiva e distributiva.
Ao fazĂŞ-lo, quero tocar em tema muito debatido nas entrelinhas e em pequenos cĂrculos, mas pouco utilizado em textos. Dentre as tantas causas que determinam o atual mal-estar do mercado editorial, há algumas que vĂŁo alĂ©m das Ăłbvias questões econĂ´micas ou das sempre interrompidas polĂticas pĂşblicas que afetam o setor. Pouco se olha para dentro, para os valores Ă©ticos, como a empatia e o respeito ao prĂłximo, ou a algumas caracterĂsticas comportamentais, como a visĂŁo sistĂŞmica do negĂłcio na sua totalidade, a proatividade do coletivo, a escuta das divergĂŞncias confluindo a um diálogo com base na crĂtica que Ă© base para o crescimento saudável. Sem nunca deixar de ter sido um negĂłcio empresarial, envolvendo competição, busca de lucratividade e melhor produtividade, “fazer o livro”, pelo menos na minha experiĂŞncia pessoal dos primeiros vinte anos, foi algo que envolveu algumas polegadas a mais de valores e comportamentos que entendiam o coletivo como algo fundamental para o conjunto da cadeia e para o desenvolvimento de cada uma das empresas.
O mundo que comentarei já está distante no tempo, mas é importante relembrá-lo, resgatar algumas formas de agir se quisermos um mercado editorial e livreiro regulado por e entre seus integrantes, o que requer uma ética e um comportamento mais condizentes ao bem que se produz, o livro.
Muito precisa ser feito para um crescimento mais sustentável, com maior cumplicidade e compartilhamento que vá alĂ©m de interesses localizados. A discrepância de ações comerciais, por exemplo, entre os descontos praticados para grandes redes de venda de livros e para pequenos e mĂ©dios livreiros Ă© algo avassalador para a manutenção de um negĂłcio com sustentabilidade. NĂŁo Ă© possĂvel que o mesmo livro seja vendido com 30% de desconto para uns e com 60% ou mais para outros. Da mesma forma, somente um mercado excessivamente desregulado no seu agir pode abrir espaço para dezenas de feiras de livros venderem lançamentos ou catálogos inteiros com 50% ao pĂşblico, evidentemente comprometendo o ciclo distributivo regular que sĂŁo as livrarias, incluindo as virtuais.
É preciso deixar de atribuir as mazelas do setor apenas Ă s geralmente deletĂ©rias polĂticas econĂ´micas governamentais, que realmente afetam a indĂşstria e o comĂ©rcio de um bem tĂŁo pouco prestigiado no Brasil. Mas Ă© preciso tambĂ©m refletir sobre o prĂłprio fazer editorial e livreiro na sua dinâmica coletiva e reconstruir alguns procedimentos que aparentemente sĂŁo triviais, mas que no cotidiano da sustentabilidade dos negĂłcios do conjunto da cadeia produtiva e distributiva sĂŁo fundamentais.
Um desses valores éticos, a empatia com os pares, e que expressava um comportamento diferente do praticado hoje (e afirmo isso de maneira geral, salvo as exceções), pensava o coletivo ao tratar do particular, a ajuda mútua não era apenas retórica, mas operativa. Encontrei este agir em muitas das editoras quando comecei essa longa jornada na Livraria e Editora Kairós em São Paulo. Pequena livraria, núcleo de artistas e autores, ponto de poetas e exposições, a Kairós era dirigida por três jovens neófitos no ramo.
Como as principais editoras nos tratavam comercialmente na atividade de livreiros? Com muito cuidado e a responsabilidade de quem sabe, ou seja, nos orientando do que era essencial ter nas prateleiras, do que vendia mais, do necessário cuidado com a quantidade do estoque, e da análise cotidiana de quais os gĂŞneros literários ou de ensaios que venderiam melhor naquele “ponto”. NĂŁo me recordo de nenhum vendedor tentar empurrar compras excessivas que pudessem comprometer o nosso frágil negĂłcio. Faziam o oposto, e me recordo, por exemplo, das visitas semanais do sr. Wilson (desculpe se confundo o nome), da Perspectiva, que metodicamente analisava os livros da editora nas nossas prateleiras, nos ajudava a perceber as tendĂŞncias, recolhia o que nĂŁo havia saĂdo em determinado tempo ou nos sugeria expor melhor o que analisava ser o mais promissor para o nosso negĂłcio.
Quando iniciamos a atividade editorial da KairĂłs e embora navegando no mesmo tipo de catálogo de uma das mais referenciais editoras da Ă©poca, a Brasiliense, seu presidente e editor, Caio Graco Prado, jamais me negou uma conversa de orientação, chegando a detalhes do que era mais promissor editar naquele perĂodo e de como editar, os cuidados, os projetos gráficos, as capas, inclusive nos indicando profissionais para realizar os trabalhos editoriais. Cada visita era um aprendizado e um incentivo a continuar no ramo editorial. Iniciante, sentia-me parte.
Tive a mesma acolhida, do ponto de vista editorial e de mercado, quando nos anos iniciais da Editora Unesp, da qual fui editor-executivo desde 1988 e presidente de 1993 a 2015, procurei Alfredo Weiszflog da icĂ´nica Melhoramentos. Alfredo era o principal nome internacional de nossa indĂşstria editorial naquele perĂodo e interessava ao projeto da Unesp abrir relações com o mundo do livro na AmĂ©rica Latina e no âmbito da Feira do Livro de Frankfurt. Ele jamais se recusou a compartilhar comigo informações, orientações e apresentações de grandes editoras e de executivos internacionais do setor, inclusive junto Ă referencial Escola do Livro de Frankfurt, inspiração para a Universidade do Livro da Fundação Editora Unesp, que criei em 1999.
Comecei a vida editorial em um tempo que todos os editores eram leitores e, como inĂcio e final dessa corrente de letras, incorporavam no seu negĂłcio largas fatias de boa vontade de compartilhar o que sabiam. Talvez o compartilhamento seja comum em outros meios empresariais, mas nas editoras e livrarias havia uma certa abertura para se entender que o sucesso de seu negĂłcio estaria vinculado ao sucesso do negĂłcio do outro, porque o objeto comum, que Ă© o livro, sendo tambĂ©m mercadoria, transcende este conceito por ser uma das partes mais expressivas da cultura e do conhecimento. Entender essa dualidade Ă© deter o pensamento sistĂŞmico, ou holĂstico, que deveria ser prĂ© requisito para as funções do setor.
Mais do que generosidade, fator que tambĂ©m compunha essas personalidades que citei, penso que havia um espĂrito da Ă©poca em que se exercia o pensamento sistĂŞmico, explĂcito no comportamento das lideranças em compartilhar, orientar e preservar a cadeia no seu todo. NĂŁo era um mundo de anjos e querubins, mas vejo aquele perĂodo como um grande pacto nĂŁo escrito de um setor que se preservava e aos seus.
É certo que o cenário hoje é outro, fruto da revolução digital e da mudança de paradigmas nos negócios desde que os conselhos editoriais se mudaram para a antessala da Bolsa de Valores, conforme escreveu Peter Weidhaas, ex-diretor da Feira de Frankfurt. Mas o objeto da indústria editorial e livreira é o mesmo. Sua natureza requer, como o meio ambiente, um diálogo onde se enxergue mais a floresta que a árvore isoladamente. Para isso é preciso resgatar valores e comportamentos que os verdadeiros editores e livreiros saberão identificar na contemporaneidade.