1.
O perĂodo mais gracioso, inteligente e criativo do malfadado sĂ©culo 20, foi aquele dos anos 20. SaĂa-se da Primeira Guerra Mundial e dava-se adeus ao monĂłtono e burguĂŞs sĂ©culo 19 e, para maior ganho, nĂŁo se adivinhava, ainda, a hecatombe que estava por eclodir. Nessa Ă©poca, tudo era possĂvel, inclusive amar livremente, cantar e dançar, assumindo uma inocente frivolidade, e ao mesmo tempo, abriam-se as portas para todas as experiĂŞncias artĂsticas. Os homens abandonavam os bigodões retorcidos e as mulheres descobriam, alĂ©m da liberdade sexual, a possibilidade de inventar figurinos sexy; eram as flappers que, no Brasil, chamávamos de melindrosas. Claro, estamos a falar apenas da classe mĂ©dia, branca, estudada e viajada. As pĂ©rfidas exclusões permaneciam intocadas, especialmente no nosso paĂs.
2.
A literatura nĂŁo podia passar ao largo dessa ebulição, e dentre os ficcionistas mais notĂłrios que repercutiam o espĂrito situa-se F. Scott Fitzgerald. O nome lembra de imediato sua obra mais celebrada, O grande Gatsby, levada várias vezes ao cinema e ao teatro. Digamos: Fitzgerald consagrou-se como autor-metonĂmia do perĂodo. Claro que o Gatsby Ă©, sem retoques, uma novela exemplar por sua relevância literária, absoluta, mas tambĂ©m e principalmente, pela representação implacável de um magnata que enriqueceu por meios discutĂveis. Com isso, uma novela como Os belos e malditos quase desaparece numa visĂŁo retrospectiva de vida e obra, mas estou por dizer que se iguala artisticamente ao Gatsby, que, Ă diferença de Os belos… trata de um caso singular, centrado numa figura emblemática e suas circunstâncias. Já quanto Ă novela sob exame, esta traz um tĂtulo plural, que funciona como um programa para sua interpretação: Ă© uma classe inteira que está denunciada em suas páginas. Belos, sim, que tinham na beleza exterior sua mais visĂvel glĂłria; malditos, sim, porque degradavam-se por seus mĂ©todos cheios de falsidade e rancor.
3.
Os belos e malditos saiu a pĂşblico quando Fitzgerald tinha apenas 24 anos e já era tido como celebridade e se declarava, sem nenhuma modĂ©stia, como o melhor escritor a escrever sobre sua geração, o que nĂŁo Ă© pouco. Vejamos do que trata o livro: Anthony Patch Ă© um dandy que circula em alto estilo, vive de rendas e sua profissĂŁo Ă© esperar a morte do avĂ´, que lhe deixaria uma montanha de dinheiro. Tem, por essas virtudes, relações prĂłximas com a alta sociedade nova-iorquina, da qual extrai o melhor, e seu caso de amor, embora vitriĂłlico e brutal, nĂŁo o impede gozar as modas e costumes, bem como a frequĂŞncia Ă vida artĂstica, Ă mĂşsica popular e aos shows dos cabarĂ©s. Seu Ăşnico contraponto a esse estilo sĂŁo seus patĂ©ticos diálogos com um escritor fracassado, que se transforma numa relação de amizade e Ăłdio, já que o mesmĂssimo Patch tinha veleidades de escritor, envolvido eternamente num fantasmagĂłrico livro sobre os papas do Renascimento.
4.
A relação sentimental dá-se com uma certa Gloria Gilbert, por quem Patch se apaixona desde logo por sua beleza — a pior forma de apaixonar-se —, dizendo dela que “a luminosidade de seus cabelos e de suas faces a tornavam a pessoa mais viva que ele jamais vira”. Mau começo, que levaria o casal a uma vida de altos e baixos, com direito a discussões perversas, das quais nĂŁo excluĂam bebedeiras e bordoadas. A imaginação de Fitzgerald era inegável, e muito prĂłxima: na vida real, Gloria Gilbert era a tumultuosa Zelda, sua brilhante esposa, fulminante em todas as áreas em que se metia, jazz-baby, mas dotada de um gĂŞnio de arrasar pirâmides, que acabou vĂtima de esquizofrenia e internada num sanatĂłrio. Viver na corda bamba amorosa era a especialidade de Fitzgerald e, visto bem de perto, habituara-se a essas tempestades temperadas a álcool.
5.
Se John Marcher, de A fera na selva, viveu toda a vida Ă espera de um acontecimento metafĂsico — o bote da fera na selva —, que viria a mudar sua existĂŞncia, o casal Gloria Gilbert e Anthony Patch vivia Ă espera dos dĂłlares de uma herança. E enquanto o avĂ´ nĂŁo se dignava a morrer, faziam projetos de viagens, compras extravagantes, mansões, e nisso apostavam seu futuro. Milionários, poderiam discutir mais detidamente sua relação, levando-a a um “novo acordo”, talvez mais sincero, talvez mais apaixonado, coisa que, naturalmente, nenhum leitor acredita. O destino — esse nome que damos ao que nĂŁo nos agrada pensar — por fim agiu e, a partir de certo momento a vida de ambos foi um parque com diversões, mas onde havia uma gigantesca montanha-russa que os elevava aos pĂncaros e logo os deixava no chĂŁo, para logo recomeçar.
6.
O capĂtulo correspondente ao final tem um tĂtulo: NĂŁo importa!. Essa sentença, com sua estrondosa exclamação, simboliza e significa um espĂrito leve e cĂnico, de que nunca Patch abdicou, e que ele compartilhava com uma geração inteira. Um verdadeiro dandy nunca se dá mal; mesmo que derrotado várias vezes, nĂŁo se considera vencido.
7.
E agora, o que nos diz Os belos e malditos? Antes de tudo, Ă© a demonstração de um eficiente artesanato de novela, que estabelece um foco e o persegue atĂ© o fim, dando lições a quem escreve, e a principal delas Ă© a superfluidade de uma mudança da personagem ao final; Anthony Patch termina a histĂłria tal como a começa. Sua perspectiva da vida nĂŁo se altera, embora os sucessivos revezes e glĂłrias — algo que percebemos, tambĂ©m, no Alex, de A laranja mecânica. Quando vejo iniciantes preocupados com o famigerado twist do final, a dita virada na personagem, costumo recomendar esses dois livros. TambĂ©m recomendo pelo refinamento das construções das personagens, especialmente do casal; cada qual tem sua individualidade, e mesmo suas brigas nĂŁo ficam no gratuito que parecem ostentar, mas radicam justamente nessa distinção entre ambos. NĂŁo sĂŁo opostos, mas semelhantes — eis o grande desafio do ficcionista. Sendo iguais, nĂŁo há conflito; se sĂŁo opostos, a relação Ă© de uma reles luta livre. No plano extraliterário, a novela de Fitzgerald tambĂ©m nos fala do efĂŞmero das construções culturais e sociais que, enquanto acontecem, parecem eternas mas, que, passada uma dĂ©cada, já nĂŁo valem mais. Os Roaring Twenties, anos de exaltação Ă vida, foram, na dĂ©cada seguinte, substituĂdos pela ascensĂŁo dos regimes autoritários de direita, responsáveis pelo maior horror a que assistiu a Humanidade. Assim, diz-nos Fitzgerald, vamos aproveitar a paz e a democracia, mas sem descuido das forças sempre a postos para solapá-las. Por tudo isso, a novela Os belos e malditos vai para a mochila.