🔓 Os artesãos da democracia

Clandestinamente e sob repressão feroz, em meio ao caos de destruição da guerra síria, um grupo de jovens inaugurou a primeira biblioteca de Daraya
A biblioteca secreta de Daraya
01/08/2021

“Nossa revolução é feita para construir, não para destruir.” Essa frase, que poderia ser das mulheres e homens que se dedicam a formar leitores em todos os quadrantes do planeta, foi dita à jornalista francesa Delphine Minoui pelo jovem sírio Ahmad Moudjahed, logo nos primeiros contatos dela com aquele pequeno grupo de jovens resistentes da cidade de Daraya, subúrbio de Damasco, bombardeada de maneira implacável pela ditadura de Bashar al-Assad, o ditador que governa a Síria há 21 anos, numa dinastia que começou com seu pai há 50 anos.

Fruto dos ventos progressistas da chamada “Primavera Árabe”, iniciada na Tunísia no final de 2010 e que se estendeu para vários países da região até 2012, a guerra civil por liberdades e democracia contra o regime opressor de presidencialismo eterno da família al-Assad e do Partido Baath sacudiu a Síria, principalmente entre os anos de 2011 e 2016, contabilizando-se mais de 200 mil mortos nos confrontos entre a população em revolta e o exército do Presidente. Naquele período a Síria tornou-se um mar de sangue e destruição, com cidades arrasadas por “bombas de barril” utilizadas pelo ditador. Por sua crueldade no combate aos opositores e por ter destruído inclusive as residências de quase metade da população síria, Bashar foi denunciado nos organismos internacionais de direitos humanos como genocida e suas ações caracterizadas como crimes contra a humanidade.

Dentre as muitas cidades transformadas em escombros, a cidade de Daraya, localizada a apenas sete quilômetros da capital, tornou-se um símbolo pela resistência tenaz e corajosa de seus habitantes. E foi também em Daraya que a jornalista Delphine Minoui eternizou um dos capítulos mais emblemáticos da resistência e, ao mesmo tempo, de um dos movimentos mais pujantes, belos e significativos do valor simbólico e real do livro e da leitura na construção do que há de melhor nos seres humanos e na busca pela autonomia e liberdade.

Especialista no Irã e no mundo árabe, Minoui nos presenteou em 2017 com um relato de um grupo de jovens que recolheu na cidade bombardeada milhares de livros sob os escombros das casas, escolas e instituições públicas. E, clandestinamente e sob repressão feroz, em meio ao caos de destruição e guerra, inauguraram a primeira biblioteca daquela cidade nos porões de uma residência também bombardeada. Rapidamente a biblioteca secreta passou a reunir diariamente os jovens que buscavam leituras e logo tornou-se palco para saraus literários, debates acalorados de opiniões e perspectivas de futuro construídas coletivamente. A biblioteca secreta de Daraya encarnou a esperança da juventude que resistia e era massacrada pelo regime. Em relato emocionante, a autora tece uma rede de confiança com os protagonistas dessa história que pode ser um dos retratos mais contundentes deste nosso tempo histórico marcado pela luta quase diária entre civilização e barbárie, onde os livros, a literatura e os seus promotores jogam papel silencioso e essencial.

Felizmente, neste 2021, a Editora Unifesp editou a pequena grande obra, que em tradução belíssima de uma formadora de leitores, a pernambucana e agora livreira francesa Ana Dourado tornou possível a leitura em português com o título Os atravessadores de livros de Daraya.

Quando o li a edição francesa, quando desenvolvíamos uma incrível atividade de formação de leitores em cidades pernambucanas, organizada pela editora Deborah Echeverria, não pude deixar de fazer analogias com a luta diuturna de gerações de brasileiros e brasileiras que aspiram por um país de leitores e que entendem a leitura como direito de todos, como recomenda o nosso Plano Nacional do Livro e Leitura e a Lei 13.696/2018 da Política Nacional de Leitura e Escrita.

E por que a analogia? Há tempos já não entendo a formação de leitores como atividade restrita às fronteiras nacionais, ao contrário, assim como o conjunto dos direitos humanos consignados após séculos de atrocidades, que todavia permanecem, a leitura é um direito inalienável da humanidade, é um bem universal. E é sempre uma luta árdua levá-la à frente, formando leitores, contrapondo-se contra a corrente do obscurantismo, da rapidez fluida e deformadora das imagens fáceis e impregnadas do consumismo perverso que nos atinge hoje desde a mais tenra idade. Impressiona o número de produtos comerciais travestidos em cultura de padrão único nas incontáveis telas. Não exagero, convido-os a percorrer as ofertas de séries e filmes infantis e juvenis dos vários serviços de streaming internacionais onde se repetem padrões de valor e comportamento bem ao gosto das mazelas que mais nos oprimem — o machismo, a xenofobia, a homofobia, o ódio às diferenças, entre outros.

Se a luta de Daraya para formar e manter a sua biblioteca secreta foi a guerra civil, aqui a nossa luta acontece na guerra não declarada de nossa desigualdade estrutural e da ausência de políticas públicas de Estado, refletida, entre outros muitos exemplos, na média anual de mais de 50 mil jovens assassinados por arma de fogo, sendo a maioria negra e das periferias, na exclusão do acesso à internet para a maioria da população, nos 39,7% dos nossos municípios que não têm saneamento básico, nos 12% apenas de brasileiros capacitados para ler de maneira integral e independente.

Não sem razão cruzei minha primeira leitura dos feitos heroicos de Ahmad e seus amigos sírios com o também pujante livro do escritor e mediador de leitura Rodrigo Ciríaco, Te pego lá fora, agora reeditado pela primorosa editora Nós.

Quando o li pela primeira vez, em 2014, foi como se algo intangível me batesse forte no estômago. Nada mais contundente do que o relato cru, direto, e redigido por um bom escritor e poeta, da realidade dos nossos alunos e alunas nas escolas públicas de nosso país. Rodrigo também descreve e nos desconcerta com seus relatos de guerra, das nossas Darayas dissimuladas, onde a violência se sobrepõe antes, durante e depois das salas de aula. Mas neste também pequeno grande livro, Rodrigo mostra, igualmente, a persistência da palavra, a imensidão que se pode atingir, como o empoderamento da maltratada Kelly quando se reconhece Poeta. É a superação da violência sintetizada no capítulo Medo: “Na sala dos professores, um aviso: Não alimentem os animais”.

Se de uma cidade destruída por bombas aéreas lançadas pelo Estado genocida vimos nascer uma biblioteca comunitária; se das escolas públicas, das bibliotecas públicas e comunitárias, dos bairros mais desprotegidos vemos surgir tantas Kellys e Sérgios, e Férrezes e Rodrigos, e Conceições e Carolinas, é certo que a capacidade de ler e escrever e a literatura são vitais para se construir um mundo mais equânime e justo.

A construção de um país e de um mundo de leitores plenos, amparados por políticas públicas de Estado que garantam a escala necessária para atingir a todos, será sempre o melhor antídoto para evitar as atrocidades que são inevitáveis quando seres sub-humanos como Bashares e Bolsonaros tomam o poder com suas milícias e tentam implantar o obscurantismo e a cassação de todos os direitos humanos que tornam possível a vida em comunidade e que realizam o ser humano como sujeito de sua própria história.

Contra os coturnos da crueldade que matam e induzem a matar, os artesãos da democracia oferecem a força suprema da palavra nas mentes e nos corações de milhões. Esta é a tarefa estratégica deste mundo que está no auge de sua encruzilhada entre a emancipação ou a destruição. Como aprendemos com as nossas andanças com o PNLL, o direito à leitura é a chave de todos os outros direitos. Não é sem razão que os déspotas têm como primeiro ato de sua necropolítica a destruição da cultura e da educação libertária. Que tenhamos isso claro para podermos exigir o que nos é de direito e darmos uma chance à vida.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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