🔓 O triunfo de Macbeth no cinema

Nova adaptação da peça de Shakespeare, dirigida por Joel Coen, traz tantos aspectos positivos que fica difícil pensar em uma versão melhor
Denzel Washington e Frances McDormand são os protagonistas do filme de Joel Coen
23/01/2022

Um marca-passos.

Tempus fugit. Uma questão de atos e tudo desmorona: a bondade, a esperança, um reino, um homem, uma mulher e a relação que têm.

É curioso pensar que Macbeth, a monumental tragédia de William Shakespeare, começa com boas intenções. Macbeth não é um vilão; torna-se um. Lady Macbeth não é louca ou manipuladora, mas uma mãe em luto, ambiciosa e solitária.

As sequências de infortúnios começam a acontecer a partir, não dos acontecimentos, da batalha vencida, do que se vê no campo de guerra, mas através do que pode suscitar uma promessa de uma vida nova. A esperança é o que arranca de Macbeth a paz. A fé na lealdade da promessa do marido é o que leva Lady Macbeth a uma solidão insustentável.

A imensa metáfora que Shakespeare nos propõe são as três irmãs estranhas, ou as três bruxas. Um recurso que coloca em cena o sobrenatural que é a própria consciência, que é o desejo, que é o sonho. Freud e Lacan leram e utilizaram tanto da obra de Shakespeare e, como concordaria Harold Bloom, suas invenções humanas para permear e fundamentar tanto das suas teorias.

Claro, nunca é gratuito quando se trata das nossas glórias e misérias. Shakespeare sempre tem como abrigar nossos mais podres poderes, nossas piores intenções, nosso escuro, nosso indizível.

A adaptação de Joel Coen para A tragédia de Macbeth me parece um triunfo. Há tantos aspectos positivos que fica difícil pensar numa melhor versão para o cinema. Para o teatro, Judi Dench e seu uivo, na cena final de Lady Macbeth, continuam sendo incomparáveis, na minha opinião. Mas, para uma adaptação cinematográfica, Coen entrega uma obra-prima.

O primeiro elemento que me pegou de surpresa foi o sobrenatural através das bruxas. Em praticamente todas as adaptações que eu conheço de Macbeth, as três irmãs, as bruxas, são apresentadas como essa tríade, como uma espécie de moiras e suas referências ao tempo, à vida e à morte. Claro, faz sentindo que seja assim e, se fosse o sobrenatural representado por três bruxas nessa adaptação, também teria sido um recurso interessante, já que o aspecto das bruxas, como a própria passagem e finitude dos eventos, casaria perfeitamente com o marca-passo, o som de tempo que se vai durante todo o filme. O que se apresenta, porém, é de uma beleza e inteligência ímpares. Ao se aproximar da neblina que cega seu horizonte, mais uma simbologia importante, Macbeth enxerga uma figura estranha. A fala original foi mantida, quando ele ordena à figura que fale, mas se referindo a ela como algo, não alguém. “What are you? Speak, if you can.”

O que ocorre a partir desse encontro é uma linguagem cinematográfica extraordinária. A figura estranha que fala com a câmera e entrega toda a fala das três bruxas, as primeiras falas do primeiro ato, em seu contorcionismo desagradável, lentamente, passa a nos remeter aos movimentos de um pássaro. Não qualquer um, mas corvos que vão aparecer em um dos solilóquios de Lady Macbeth e que, desde antes do século 17, já sugeriam má sorte. Um símbolo premonitório.

Conta a lenda que se menos de seis corvos permaneceram na Torre de Londres, o reino cai. Assim, seis corvos são mantidos nos jardins da torre com suas asas cortadas. A referência ao pássaro em Macbeth é facilmente identificada. Assim como no folclore, na peça há uma ambiguidade interessante para o simbolismo dos corvos. O pio desarmonioso, estridente, e a cor escura foram, por séculos, associados à má sorte, perda ou doença, mas, por outro lado, há também uma associação a oportunidades e renovação, como a carta da morte no tarô.

Mas na cenografia do sobrenatural isso não é só. A interação de Macbeth com aquela figura é única. Em vez de nos apresentar três figuras, como foi até aqui, a bruxa, a única, tem um reflexo duplo na poça de lama de onde conversa com Macbeth. Ao longo do crescimento e expansão do seu desejo de ser rei, da sua ambição e da sua ganância, os reflexos saem da água e se reproduzem ao lado da bruxa. Tal como se fosse uma visão periférica de Macbeth.

Quanto maior seu desejo por poder, mais a sério ele leva as premonições que tanto o agradam. Afinal, diz a criatura que Macbeth será rei e ele, embevecido por tal promessa, passa a visualizar seu futuro e creditar a ideia de um desejo como se fosse matéria. A mesma técnica e recurso voltam quando, mais uma vez, a presença do sobrenatural retorna. Dessa vez, pendurada na estrutura de um teto dentro do castelo, como se fosse um corvo em pouso e repouso, a figura estranha volta a se duplicar, alimentando o crescente medo de Macbeth.

Quanto mais medo e culpa ele sente, mais ele precisa saber do futuro, mais ele vê o elemento premonitório, mais a bruxa se desdobra e cresce como ameaça ao vilão que se tornou Macbeth. É, sem dúvida, um recurso inteligentíssimo e muito potente que se desdobra em possibilidades interpretativas.

Sobre Lady Macbeth, meu tema predileto na peça, Frances McDormand propõe uma personagem potente. Uma Lady Macbeth mais madura e que foi, até então, companhia e companheira do marido. Há todo o drama esperado em um dos solilóquios que eu mais gosto na peça — o que ela diz depois de ler a carta do marido contando sobre a profecia das bruxas.

Palavras e expressões fortes como “tira de mim o sexo”, “venha para os meus seios de mulher e faça do meu leite fel”, são falas cruciais para nos preparar para o processo pelo qual irá passar Lady Macbeth. Ali ela nos avisa que está disposta a renunciar sua condição frágil de mulher acompanhante para, enfim, ser participante do regicídio, a cabeça por trás do plano.

Ela se dispõe a abrir mão do que lhe foi conferido como identidade para experimentar o outro lado, o lado das ações, das resoluções, das atitudes, do poder, o lado masculino. No entanto, a última cena de Lady Macbeth, quando ela não consegue tirar a mancha que vê nas mãos, uma cena onde ela parece estar sonâmbula, em delírio e onde, muito interessantemente, temos a acompanhante dela e um médico discutindo a dificuldade do tratamento para distúrbios mentais, é uma maravilha absoluta.

Denzel Washington também me parece executar muitíssimo bem o processo pelo qual passa Macbeth. Lembra-me um Otelo mais velho, mais machucado, ainda tão manipulável, ambos, Macbeth e Otelo. Mas o que é mais bonito e que, me parece, mais acertado é a relação de intimidade entre Macbeth e Lady Macbeth. Há tantas produções que colocam o par como personagens frias, jovens demais, sem muita cumplicidade.

Nessa adaptação é muito nítida a intimidade e comprometimento de um para com o outro. Mas, à medida que lady Macbeth fortalece sua decisão de compromisso com o regicídio, Macbeth é tomado por culpa e hesita. Quando, em algumas cenas, ele olha nos olhos da mulher, é claro que não a reconhece. Não supunha que ela tivesse a serpente debaixo da flor, como numa das falas dela para ele. É uma relação de crescente estranhamento ou de crescente conhecimento e, enfim, a ruptura diante da nítida incompatibilidade e abandono.

E, claro, uma das imensas qualidades dessa adaptação é a fotografia. Quanto drama, quanta beleza, quanta comoção. Os símbolos e metáforas tão ricos passam abundantes pelo filme. A última cena, talvez, seja a mais impressionante de todas. Um reino para sempre amaldiçoado sob a revoada dos corvos que, curiosamente, ressurgem também como possibilidade de renascimento. Como a carta da morte no tarô.

 

NOTA
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Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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