Cético(a) leitor (a), convido-o (a) a acompanhar comigo esse raciocínio. Segundo o South African Medical Research Council, órgão do governo da África do Sul, no ano passado foram registradas 140 mil mortes acima da média naquele país. E, pelos cálculos da maior companhia privada de seguros médicos de lá, chamada Discovery, 120 mil dessas mortes são atribuíveis à covid-19, ou seja, 86% do total. No entanto, de acordo com as estatísticas oficiais, esse número gira em torno de 50 mil óbitos – uma considerável diferença… Isso se deve ao fato de que “as mortes atribuídas à covid são subestimadas em quase todos os países do mundo”, nas palavras de Emile Steep, da Discovery.
Caríssimo leitor, creio que você concordará comigo que, entre esses “quase todos os países do mundo”, podemos incluir o Brasil, não é mesmo? Então, continuemos.
O ano de 2020 bateu recorde de registro de mortes no Brasil, segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais. No total, 1,4 milhão de pessoas morreram no último ano, o que representou um aumento de 8,6% em comparação a 2019. A variação é cerca de quatro vezes maior do que as taxas observadas na série histórica, que até então nunca haviam ultrapassado 1,9% de aumento de mortes de um ano para outro.
No geral, houve crescimento de 35% de mortes causadas por doenças respiratórias, sendo a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) a principal responsável por essa elevação dos registros – a maior parte dos casos de covid-19 não identificados até o falecimento do paciente é registrada como SRAG. As mortes ocorridas em casa dispararam, apresentando aumento de 22% – devido principalmente à insegurança em comparecer aos postos de saúde e hospitais, por conta da pandemia. Entre as mortes ocorridas em domicílio, o maior crescimento foi justamente o de óbitos causados por SRAG, 710%. Nos hospitais, também houve uma explosão de falecimentos justificados por essa síndrome, 988%.
Concluindo, matemático (a) leitor (a): se fizermos a mesma conta usada na África do Sul, poderíamos imaginar que ao invés de 260 mil mortes oficialmente atribuídos à covid-19 no Brasil, este número estaria rondando hoje algo em torno de 600 mil brasileiros. Uma tragédia que devemos colocar na conta do governo do, Deus que me perdoe, Bolsonaro, que desfila por aí desdenhando da morte – na verdade, quem desdenha da morte, desdenha é da vida.
Luz na escuridão
Ésio Macedo Ribeiro, poeta, romancista, ensaísta: “Para me manter são durante este período de inferno mundial, danei a ler um livro atrás do outro. Comecei pelos sete primeiros romances do Machado de Assis, e segui, por uma ânsia de conhecer e compreender melhor o país que escolhi para viver, por alguns autores norte-americanos que eu ou tinha lido pouco ou nunca tinha lido, como Tennessee Williams, Truman Capote, Gore Vidal, Paul Auster, Andrew Holleran e Edmund White. Também li o peruano Mario Vargas Llosa, o mexicano Jorge Ramos, e a poesia reunida do português José Luís Monteiro. Li, sobretudo, muita coisa sobre morte e luto, incluindo textos do estoico Sêneca. De minha fatura, concluí o projeto gráfico de Presente, coleção de poemas que escrevi em homenagem ao meu pai e que publicarei, às próprias custas, numa pequena tiragem para amigos e parentes. Nas madrugadas insones, de maio de 2020 para cá, escrevi poemas. Já os digitei (escrevo sempre à mão) e comecei a compor uma nova antologia, intitulada Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto”.
Parachoque de caminhão
“Quando você ensina um cachorro a comer batatas, e, depois, dá-lhe um pedaço de carne, ele o abocanhará a despeito disto, porque está em sua natureza. E se você der autoridade ao homem, acontece a mesma coisa: ele vai-se atirar a ela. Isto vem naturalmente: o homem, no começo, é um animal, e, só depois, como um pão que recebe manteiga, deixa-se recobrir com uma camada de decência.”
Erich Maria Remarque (1898-1970)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Cassiano Ricardo
(São José dos Campos, SP, 1894 – Rio de Janeiro, RJ, 1974)
Depois de tudo
Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.
(A difícil manhã, 1960)