Construir polÃticas públicas de incentivo à leitura e formação de leitores, no Brasil, é colocar em pauta sua própria história enquanto nação. Quão distante estamos de processos civilizatórios de outros paÃses mais bem-sucedidos que, sabiamente, no passado, reconheceram, nos processos educacionais e culturais, a centralidade estratégica da escrita e da competência leitora como fundamentos de nações independentes, democráticas e sustentáveis.
Não se trata de afirmação amarga de um brasileiro frustrado com sua história pátria. Na verdade, o que define uma polÃtica pública de livro e leitura, aqui ou em qualquer hemisfério do planeta, é a importância objetiva e o valor simbólico que o Estado atribui a este maravilhoso instrumento humano que é a sua capacidade de criar narrativas, traduzi-las em palavras escritas, que serão lidas por outros seres humanos, que as recriarão de acordo com seu juÃzo e sensibilidade. O resultado deste processo complexo, que envolve inúmeras variáveis além das palavras, é uma apreensão do real e do imaginário, que nos possibilita compreender o que somos e o que os outros são. Ler o mundo, na sÃntese de Paulo Freire.
A leitura e a escrita, em conceito reiteradamente comprovado, são produtos sociais, são uma construção social, amplamente utilizada pelas sociedades modernas e contemporâneas para se conhecer, se compreender, se estruturar, se organizar enquanto comunidade de sujeitos. Das plataformas e suportes mais primários e fÃsicos, aos sofisticados meios virtuais contemporâneos e futuros, a palavra é o elo primordial de comunicação entre os seres humanos, imprescindÃvel em todas as atividades do cotidiano, em todas as camadas sociais e em todas as circunstâncias da vida.
Se a palavra e a sua compreensão são estratégicas para a vida, elas se tornam, de imediato, fundamentais para a polÃtica e para o exercÃcio do poder. Por esta razão, ao tratarmos de polÃticas públicas de livro e leitura, tornamos indissociável esta atividade das ações polÃticas que determinam, de maneira soberana ou subordinada, os direitos e os deveres, os rumos e os valores cÃvicos, o desenvolvimento sustentável ou dependente, de todas as nações. Dominar a leitura e a escrita é, portanto, exercer o poder da cidadania plena nos regimes democráticos.
Alienada historicamente de seu direito à leitura, e ao poder do exercÃcio pleno da palavra, a maioria esmagadora da população brasileira é credora de nossa imensa dÃvida social de acesso à leitura. Esta dÃvida reflete, em primeira instância, a enorme desigualdade social que nos coloca, enquanto paÃs, no topo da lista mundial.
Os dados de toda a série histórica da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que vêm desde 2007, se reafirmam nesta quinta edição de 2019. Retratos da leitura também são um retrato da exclusão, para a maioria dos brasileiros, dos seus elementares direitos humanos de exercer a cidadania plena.
Vejamos. Na pesquisa Retratos 4, de 2015, computávamos 56% de leitores no paÃs (104,7 milhões de pessoas); na Retratos 5, de 2019, este número cai para 52% (100,1 milhões de pessoas). O que estes números nos revelam?
Em primeiro lugar, a evidência que, em ambas as situações, quase a metade dos brasileiros não tem acesso ao direito à leitura, o que, em pleno século 21, é uma atrocidade civilizatória e um fator de subalternidade perante os paÃses lÃderes. Para além desta constatação inevitável, e se fôssemos um paÃs que se propusesse a crescer com sustentabilidade, as ações do Estado se voltariam para acelerar o saneamento desta desigualdade brutal. Infelizmente, minha segunda consideração demonstra um movimento contrário ao aceleramento e o que temos são retrocessos profundos.
Como nos revela a Retratos 5, de 2019, perdemos 4 pontos percentuais de leitores no último quadriênio, ou 4,6 milhões de concidadãos que não sustentaram o acesso conquistado nos números de 2015. Número este, é bom lembrar, que havia subido razoavelmente da Retratos 3, de 2011, dos 50% (88,2 milhões de leitores) para os 56% (104,7 milhões) de 2015, da Retratos 4.
Em análise que fiz em 2016, publicado no capÃtulo 3 do livro Retratos da Leitura no Brasil 4, organizado por Zoara Failla, demonstrei que este crescimento se apresentava como um primeiro resultado dos esforços empreendidos desde a implantação do Plano Nacional do Livro e Leitura — PNLL, em 2006, que soube, enquanto polÃtica pública, juntar os esforços do Estado e da sociedade, assim como da cultura e da educação. Criou os primeiros canais de comunicação entre esses entes e, ao mesmo tempo, produziu e incentivou inúmeras ações, programas e projetos que deram um impulso extraordinário em toda a cadeia criativa, produtiva, distributiva e mediadora do livro e da leitura no Brasil. Movimento que não se via desde a criação do Proler em 1998, e que ampliou, significativamente e de forma planejada, os investimentos públicos em formação leitora.
Defendia então, como ainda defendo como hipótese baseada nos dados que temos, e que demonstro no capÃtulo citado, que o movimento pela leitura no Brasil se expandiu com a introdução do PNLL como polÃtica de Estado e que, junto com os investimentos da sociedade, criaram um ciclo virtuoso cujos resultados contabilizamos em 2015.
O que observamos, nos últimos quatro anos, pelos grupos polÃticos majoritários no executivo, foi a destruição do PNLL e a não implantação de qualquer nova estratégica de polÃtica pública de leitura inclusiva após a deposição da presidenta Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016.
Os movimentos de resistência pró-PNLL, internos ao governo Temer, foram insuficientes para sustentar os programas deixados pela gestão anterior. O governo Bolsonaro ignora a única conquista que se consolidou no governo Temer, que foi a aprovação e sanção da Lei 13.696/2018, que instituiu a PolÃtica Nacional de Leitura e Escrita — PNLE. E esta lei o obriga a criar um PNLL decenal com metas, objetivos e com determinações expressas, sendo a primeira a reconhecer o direito à leitura para todos e a impor ao Estado o dever de sustentar polÃticas públicas de livro, de formação de leitores, de literatura e de bibliotecas.
Implantado de 2006 a 2010, com forte ação planejada e investimentos inéditos do Estado brasileiro, em plano suprapartidário e com forte conotação de um verdadeiro pacto social, os efeitos holÃsticos do PNLL resultaram em aumento de leitores no quadriênio 2011/2015. Bombardeado a partir de 2016, com a crise polÃtica-institucional democrática, o PNLL é totalmente desidratado enquanto ação articuladora e geradora de programas e ações do Estado, ficando a responsabilidade da formação de leitores totalmente nas mãos da outrora parceira do Estado nesta tarefa, a sociedade, em sua inabalável resiliência.
Não é ocioso lembrar que, em 2005, antes do PNLL e no engajamento robusto do Estado, no levantamento de ações que foi realizado pelo Ano Ibero-americano da Leitura — Vivaleitura, 70% das ações pró-leitura eram de responsabilidade da sociedade civil. Hoje, retrocedemos a 2005. O desprezo ao papel desempenhado pelas polÃticas públicas na formação de leitores, expresso no simples abandono, ou mesmo em propostas elitistas de taxação do livro, como o PL 3887/2020, é desolador e uma irresponsabilidade polÃtica com graves consequências.
No contexto dos ataques destrutivos do atual governo, internacionalmente notórios, à educação e à cultura em seus amplos aspectos, somando mais um quadriênio à s cinco pesquisas da Retratos da Leitura no Brasil, a perspectiva é sombria, desalentadora no que tange à necessária PolÃtica Pública de Estado para a Leitura. Sim, assim em letras maiúsculas, como deveriam ser todas as polÃticas públicas nas nações que respeitam seu povo, suas necessidades, suas enormes potencialidades, seus direitos humanos e que marcham, democraticamente enquanto Estado e sociedade, para o objetivo comum de um paÃs ecologicamente sustentável, economicamente justo, socialmente includente e politicamente soberano perante a comunidade das nações.