* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
Passei metade do ano que agora termina no meu país e a outra em Lisboa, mas, espiritualmente, estive ligado, como sempre, à porção do mundo afro-euro-atlântico a que pertenço: Angola, outros países africanos de língua portuguesa, Portugal, Brasil e restantes américas. Alguns, por comodismo (hipótese benigna) ou estratégia (hipótese perversa e inaceitável), teimam em usar o termo “lusofonia”, associado à língua portuguesa, para caracterizar (e enquadrar) os espaços em questão e, principalmente, os contactos e relações entre eles, culturais e não só. Além de restritivo, o termo está errado.
De facto, a história pôs em contacto tais espaços, mas o principal instrumento que, hoje, viabiliza e expande as ligações entre uma parte de África, Portugal e o Brasil é a língua portuguesa, equivocadamente dita “lusófona” por associação com a Lusitânia, região que é considerada o berço da portugalidade. A verdade é que a língua portuguesa não tem nada a ver com a Lusitânia. O português é, sabidamente, “filho do galego e neto do latim”, ou seja, não é lusitano (a Galiza fica longe), pelo que os seus falantes não são “lusófonos”. Recomendo, para se saber um pouco mais sobre o tema, a leitura do livro Identidades impostoras, do angolano Jonuel Gonçalves.
A “lusofonia” é, portanto, uma ficção. Além disso, só a língua portuguesa não explica nem pode servir de fundamento para a cooperação entre os diferentes países e regiões que a usam, desde logo porque em todos eles (incluindo Portugal) são faladas igualmente outras línguas. Os fundamentos dessa cooperação devem ser buscados na história em geral, a qual gerou pontos de contacto (e interesses) entre os povos desses países, criando, inegavelmente, uma cultura que pode ser considerada “comum”, embora, como é óbvio, não tenha obliterado as culturas nacionais de cada um deles. “Comum” não quer dizer “único”. Aliás, não existem culturas “únicas”, nem dentro de um só país.
Antes de começarem a xinguilar, os “nacionalistas” furiosos, sejam eles quem forem, devem meditar em alguns exemplos facilmente verificáveis no dia a dia. Porquê que brasileiros em geral, apesar de muitos deles se referirem à África como um todo, se sentem mais “em casa” quando visitam ou vão morar em países como Angola, Moçambique ou Cabo Verde do que sentem em outros países africanos? Porquê que os africanos, na maioria negros, se adaptam bem ao Brasil, em regra, mesmo sabendo (e tendo de enfrentá-los) dos problemas raciais desse país? Porquê que os falantes de língua portuguesa, quando estão em outros países (fora da sua comunidade linguística), tendem a aproximar-se de quem a fala, mesmo que não tenham dificuldades de comunicação nas línguas faladas nesses países? Porquê que há tantas semelhanças entre as suas preferências musicais? E até culinárias?
Cultura é tudo isso. E tudo isso é fruto da história. O problema, entretanto, é que a história precisa de ser conhecida e entendida integral e não apenas parcialmente. A história não tem donos. É imperioso partir dessa visão, se realmente quisermos colocar a história ao serviço de um projeto comum e que atenda, numa base equitativa, aos interesses de todos.
O primeiro passo é reconhecer e assumir os erros e as injustiças da história. A história – ninguém o ignora – é feita de sangue, guerras, crimes, roubos, pilhagens, estupros, traições e outras ignomínias, o que deve ser entendido, mas não continuar a ser glorificado (como, entre outros, o fazem muitos portugueses, aberta ou envergonhadamente; um exemplo descarado e despudorado recente foi o posicionamento da extrema direita espanhola em relação a Cortéz), pelo contrário: tais atos devem ser, sempre que possível, reparados de alguma forma, mesmo que apenas simbólica. Para mim, acrescento, “reparação histórica” não é necessariamente sinónimo de destruição de estátuas, embora algumas delas não façam falta nenhuma, pelo contrário, e o seu lugar, quando muito, sejam os museus.
O segundo passo é reconhecer os contributos de todos para a construção do mundo, tal como o temos hoje. Se, a partir do século 15, o eixo do mundo deslocou-se para o Atlântico, isso deve-se não apenas aos navegadores e conquistadores europeus, mas também aos milhões de africanos levados para as américas (e para a Europa), como escravos. Foram eles, com o seu trabalho e as suas técnicas e conhecimentos – alguns deles ignorados pelos seus proclamados “senhores” –, que construíram o Atlântico e ajudaram a consolidar o capitalismo, sistema económico até hoje universalmente dominante. Evoquem-se aqui, a propósito, as interrogações de Brecht no seu célebre poema Perguntas de um operário letrado.
Os africanos levaram igualmente para as américas e vários países europeus a sua arte e a sua espiritualidade. A importância desse facto para a cultura de vários outros povos – dos quais eles passaram, por força da história, a fazer parte – e da cultura universal em geral é confirmada por numerosos exemplos, da música (jazz, samba, rumba, tango, fado, rock e tantos outros ritmos espalhados pelo mundo) às artes plásticas e outras manifestações artísticas.
Como angolano, não posso senão orgulhar-me da enorme contribuição dos meus ancestrais, em condições altamente adversas, para a construção desse mundo novo. Dos 12 milhões de pessoas estimadas que foram levadas como escravos para as américas, os angolanos foram a maioria. Soube-se há poucos anos, por exemplo, que em Jamestown, a primeira colónia constitutiva do que são hoje os Estados Unidos da América, havia angolanos. No Brasil, o maior recetor de escravos africanos das américas, os angolanos eram claramente a maioria, tendo atingido entre 75% a 80%. Mas também foram levados para outros países da América do Sul e do Caribe.
Em alguns desses países, como a Argentina, os antigos escravos e seus descendentes foram praticamente extintos, mas em todos eles a sua presença cultural está viva até hoje. As marcas africanas e em particular angolanas estão presentes em inúmeras palavras, ritmos, instrumentos, alimentos e práticas sociais locais (ou seja, na sua cultura). É por isso, por exemplo, que os angolanos se identificam também, pelo menos em parte, com os povos latino-americanos (talvez não tanto com as suas eurocêntricas elites dominantes). O Atlântico une-nos.
Todos nós, recorde-se, possuímos várias identidades, que, em regra, afirmamos consoante os contextos e as conjunturas. Desde logo, e como bem disse a escritora Paulina Chiziane, referindo-se aos moçambicanos, também nós, angolanos, somos feitos do mundo bantu e do mundo “que os outros trouxeram”, isto é, o mundo europeu (é só lembrar que a primeira coisa que os angolanos fazem, quando chegam a uma cidade estrangeira, não-portuguesa, é procurar um restaurante português; a única exceção talvez seja o Brasil…). Mas, como procurei demonstrar atrás, a dimensão atlântica tem de ser igualmente convocada para explicar a angolanidade na sua totalidade. A história assim o exige.
Quanto a certos povos europeus (pelo menos os portugueses, espanhóis, franceses e italianos), também precisam de assumir a dimensão africana (em alguns casos, igualmente árabe e berbere) da sua identidade, sem quaisquer complexos. Em Portugal, por exemplo, muitos séculos antes das atuais escolas de kizomba ou do impacto do kuduro, já as princesas do Reino do Congo davam farras todos os fins de semana na Mouraria, em Lisboa, onde moravam.