🔓 O modernismo brasileiro e as literaturas africanas

Os escritores africanos de língua portuguesa descobriram no modernismo brasileiro a possibilidade de romper com a influência dos modelos literários europeus
Ilustração: FP Rodrigues
21/02/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Comemorando-se este ano o centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, que terá correspondido ao advento do modernismo no maior país de língua portuguesa do mundo (estou fora da maka entre o Rio de Janeiro e São Paulo levantada pelo cronista Ruy Castro a propósito disso!), abordo nesta coluna um tema já aflorado publicamente por vários especialistas brasileiros que estudam as literaturas africanas de língua portuguesa, mas talvez pouco destacado junto do grande público: as relações entre essas literaturas e o modernismo brasileiro.

Reitero, desde logo, algo que tenho afirmado várias vezes: as literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique, sobretudo, provavelmente não seriam o que são hoje sem o modernismo brasileiro (além da negritude e do realismo social português). O “pai” dos estudos acerca das literaturas africanas de língua portuguesa, Manuel Ferreira, considera que a influência do modernismo brasileiro sobre estas últimas se operou pela descoberta da prosódia brasileira, que mostrou aos autores africanos que a poesia, por exemplo, não precisava de seguir os modelos lusitanos de métrica e ritmo. Na mesma linha, o professor de literaturas africanas na USP Mário Lugarinho considera que, mais do que a temática, esse foi, quase certamente, o principal fator da influência em questão.

O angolano Maurício Gomes, por exemplo, no seu poema Exortação, foi explícito:

Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,
Poetas do Brasil,
Do Brasil, nosso irmão,
Disseram:
“É preciso criar a poesia brasileira,
De versos quentes, fortes como o Brasil,
Sem macaquear a literatura lusíada”.

               Angola grita pela minha voz,
             Pedindo a seus filhos nova poesia!

Deixemos moldes arcaicos,
Ponhamos de lado,
Corajosamente,
Suaves endeixas,
Brandas queixas,
E cantemos a nossa terra
E toda a sua beleza.

Angola, grande promessa do futuro,
Forte realidade do presente,
Inspira novas ideias,
Encerra ricos motivos.

             É preciso inventar a poesia de Angola!

A propósito dessa identificação entre a prosódia brasileira e as prosódias africanas, é preciso não esquecer a presença negro-africana, em particular angolana, no Brasil. Como é sabido, este último foi o maior recetor do mundo de africanos levados como escravos das suas terras de origem, sobretudo das regiões do Congo-Angola e do reino de Ndongo (ambas em território angolano), o que teve como consequência o facto de um dos traços determinantes da identidade nacional e da cultura brasileira ser essa marca africana. Era, pois, “fácil”, digamos assim, aos autores africanos reconhecerem-se na prosódia brasileira, pois tratava-se da sua própria prosódia, que a influência da colonização portuguesa nos seus países procurava embotar, em vão.

A verdade é que, na primeira metade do século 20, quando os autores africanos de língua portuguesa começaram a sentir necessidade de rutura com os modelos literários europeus, eles tinham acesso, por diferentes vias (o tema merece, penso, um estudo particular), ao que era produzido no Brasil em termos culturais, nomeadamente na música e literatura. Começaram, assim, por (re)descobrir a sua própria originalidade (no sentido etimológico, de “origem”) via modernismo brasileiro, mas não só.

O poeta e crítico literário angolano Costa Andrade, que lutou de armas na mão pela independência de Angola, revelou, a propósito: “Drummond de Andrade, Graciliano, Jorge de Lima, Cruz e Sousa, Mário de Andrade e Solano Trindade, Guimarães Rosa, têm uma presença de mestres… Eles estão presentes nas preocupações literárias dos que lutam pela liberdade”. Por seu turno, o cronista Ernesto Lara Filho, também angolano e talvez o único autor do mundo “lusófono” que se aproxima do festejado modelo brasileiro de “crónica”, sublinhou: “Rubem Braga, o ‘sabiá’ da crónica do Brasil, anda nos nossos recortes literários. Henrique Pongetti é lido por nós, também, Raquel de Queiroz e Nelson Rodrigues, esses tratamo-los por tu. São-nos familiares. Todo o angolano ri com as piadas de Millôr Fernandes e chora com as reportagens de David Nasser sobre Aida Curi”.

O que se passou em Angola aconteceu também em Cabo Verde, onde, de acordo com Mário Lugarinho, os respetivos autores descobriram o modernismo brasileiro nos anos 30 do século passado, através de uma troca de cartas entre Jorge Barbosa, pioneiro da moderna poesia cabo-verdiana, e o poeta Ribeiro Couto, então adido cultural do Brasil em Lisboa. A principal influência brasileira na poesia cabo-verdiana desse período foi Manuel Bandeira. Em Moçambique, a importância do modernismo brasileiro para a afirmação identitária da literatura foi reconhecida por Mia Couto: “Necessitava-se de uma literatura que ajudasse a descoberta e a revelação da terra. Uma vez mais, a poesia brasileira veio em socorro dos moçambicanos, que descobriram nesses escritores e poetas [ligados ao modernismo] a possibilidade de escrever de um outro modo, mais próximo do sotaque da terra, sem cair na tentação do exotismo”. Acrescente-se, a título de mais um exemplo, que o modernismo brasileiro reverbera, sem dúvida, na poesia da poeta nacional de São Tomé e Príncipe, Alda do Espírito Santo.

Tudo começou, repita-se, pela prosódia. Como ensinam Robson Deon e Maurício César Menon, os escritores africanos, empenhados em romper com Portugal e os modelos europeus, “passaram a utilizar e absorver as novas formas de expressão artística advindas da poesia brasileira modernista que, prezando pela afirmação dos elementos nacionais, se construía, também, a partir da negação dos modelos provenientes da Europa”. Mas, diga-se, não foi apenas a prosódia, pois as temáticas também jogariam um papel que não pode ser ignorado. A professora jubilada da Universidade Federal Fluminense Laura Padilha, por exemplo, considera que Carlos Drummond, “situado” entre a primeira e a segunda geração do modernismo brasileiro, inspirou os escritores moçambicanos, como José Craveirinha, a escreverem sobre o quotidiano, como ele tão genialmente fazia. Sem esquecer, diga-se em jeito de parêntese, as temáticas do chamado “romance nordestino” (Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, principalmente).

Uma nota final para reiterar que o objetivo deste texto foi apenas chamar a atenção para um tema que, acredito, merece ser mais divulgado. Os leitores que tenham interesse no mesmo poderão encontrar informações mais detalhadas e opiniões mais abalizadas em artigos dos professores Benjamim Abdala Júnior, Rui Guilherme Gabriel, Simone Caputo Gomes, Elisalva Madruga, Tânia Macedo e Rita Chaves, além dos anteriormente referidos Mário Lugarinho, Robson Deon e Maurício César Menon, muitos deles disponíveis na Internet.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

Rascunho