Costumo passar as festas de fim de ano em casa: telefono para amigos e parentes mais velhos e que vivem sozinhos; recordo dos que têm passado dificuldades e procuro saber como estão. Mas não gosto do Natal. Sempre me pareceu uma celebração triste. O evento da Natividade, contado todos os anos por minha avó materna, parecia estar restrito apenas ao presépio de sua casa. Nas ruas, eu encontrava desigualdade e diferenças imensas dos que podiam celebrar consumindo e dos que nada podiam ter. Muitas vezes ao acompanhar minha mãe nas compras, eu via crianças chorarem por não poderem ter os presentes que gostariam. Também via meus primos chorarem desapontados ao abrirem os embrulhos deixados no pinheiro de plástico com chumaços de algodão fazendo-se da neve, porque quase sempre o que ganhavam não correspondia às propagandas veiculadas dia e noite na TV. Não raro tudo acabava numa enorme confusão com crianças e pais chateados.
Depois trabalhei no comércio durante os primeiros anos da vida adulta e, além de ser um período em que trabalhava exaustivamente, era também o que mais via consumidores agressivos, maltratando pessoas, brigando por objetos e se aproveitando de sua posição para humilhar os que lhes serviam. Famílias carregando as empregadas domésticas e babás para as compras como se elas não tivessem as suas próprias famílias ou coisas mais interessantes a fazer. Assim como via pessoas correndo de um lado a outro; ruas e transportes públicos lotados. Era cansativo demais tudo isso, de forma que foi libertador ir na contramão e não celebrar as festas de fim de ano.
Uma vez meu pai fez um grande sacrifício – aliás sua vida toda foi de grandes sacrifícios – e comprou presentes para mim e meus irmãos em suaves prestações. Eu tinha 11 anos e foi um dos últimos presentes que ele pôde me dar, depois a situação financeira da família só fez piorar: uma máquina de escrever Olivetti Lettera 82. Era verde e virava uma pequena maleta. Foi um dos presentes mais preciosos que ganhei e a máquina foi minha companheira nos dez anos seguintes. Escrevi contos, iniciei romances – As primeiras 80 páginas de uma versão perdida de Torto arado nasceram nela – tudo datilografado com os dois dedos indicadores porque nunca pude fazer um curso de datilografia. Depois descobri que Jorge Amado escrevia do mesmo jeito.
Mas neste ano que tudo parece fora de lugar o Natal ganhou um significado ainda mais triste. Há milhões de famílias enlutadas ao redor do mundo por conta da pandemia do coronavírus. Lembro-me de como foi o meu primeiro Natal sem minha avó, sem seus presépios. De como esse vazio, por mais que o tempo passe, continua a ser um vazio pelo simples fato de que as pessoas são únicas. Ao olhar para os lados percebemos que as pessoas continuam a sofrer com familiares internados ou que não resistiram, tudo numa escala talvez nunca imaginada por nenhum de nós. Como os sobreviventes de 2020 recordarão deste ano no futuro?
Quando comecei a escrever esse texto pensei em contar um pouco da minha experiência pessoal com Clarice Lispector, que acaba de completar um século. Mas assim como seus textos seguiam por caminhos não planejados, terminei aqui. Recordei de uma crônica sua, especial, publicada no Jornal do Brasil no ano de 1968 e intitulada Meu Natal. Nela, Clarice conta que os filhos pequenos dormiam cedo e não conseguiam acompanhar as ceias natalinas. Ao descobrir que uma amiga havia perdido os pais e passava a noite de 24 de dezembro dormindo depois de uma boa dose de ansiolíticos, ela combinou que as duas jantariam todos os anos num restaurante. Lá veriam muitas pessoas solitárias que faziam o mesmo. Clarice ainda conta que havia um trato: “Nós combinamos que cada uma paga a sua parte no jantar e que trocaremos presentes: o presente é a presença de uma para a outra”.
Mas teve um Natal que a amiga rompeu o trato e lhe deu de presente, a ela que não era religiosa, um missal com o pedido: “reze por mim”. No ano seguinte, Clarice sofreu um acidente enquanto dormia: um incêndio de grandes proporções destruiu seu quarto, móveis e livros. As queimaduras pelo corpo lhe deixaram entre a vida e a morte por alguns dias, e outros tantos foram necessários para poder deixar o hospital. Depois ela realizou muitas cirurgias reparadoras nas pernas e no braço direito, que nunca mais foi o mesmo; terminou a vida ostentando esse braço como um galho retorcido e um cigarro entre os dedos. Do quarto destruído só restou intacto o missal que não queria.
2020 foi o ano em que a constatação da fragilidade da vida me remeteu às palavras finais de Água viva: “Aliás não quero morrer. Recuso-me contra ‘Deus’. Vamos não morrer como desafio?”. A recordação dessa batalha, do desafio de não morrer – de doença, de indiferença, de falta de democracia – será como o missal que Clarice não queria, e por triste ironia resistiu ao incêndio que lhe tirou muito.