No livro A literatura e os deuses, Roberto Calasso fala de um deus indiano revestido com um manto feito de sĂlabas. Esse manto, segundo a mitologia indiana, protege o mundo; se ele se desfizer, o mundo acaba.
Temos falado sobre o risco de o mundo se extinguir em função do aquecimento global, dos desastres ambientais e das guerras. Mas nĂŁo temos falado sobre o manto de sĂlabas que está se desfazendo diante dos nossos olhos; um deus que está ficando nu, enquanto o mundo vai ficando desprotegido de sĂlabas atĂ© se destruir.
Por que esse manto de sĂlabas protegeria o mundo?
Porque as sĂlabas sĂŁo o ritmo do mundo, delas Ă© que sĂŁo feitas as palavras, as canções e os poemas, elas sĂŁo a primeira expressĂŁo, a produção da linguagem (nosso casco, concha, nossa tinta e ninho) em estado de nascimento e, aos poucos, tambĂ©m em estado de maturação, quando as sĂlabas se reĂşnem para formar signos — as palavras — e suas combinações rĂtmicas — frases, poemas, preces e ritos. Das sĂlabas — de inĂcio balbucios fisiolĂłgicos de fome, medo e desejo, imitação dos ruĂdos da natureza, da cidade e das palavras dos adultos — nasce a percepção da vida como linguagem e ritmo. Ritmo do sono, da escuridĂŁo e da luz, de quando as coisas começam e terminam, do ontem, hoje e amanhĂŁ, das pausas, das viagens, ritmo da morte — tudo acompanhado de palavras, marcadoras rĂtmicas. SĂŁo as palavras que nos permitem, alĂ©m de acompanhar os ritmos, inventar outros; sĂŁo essas formas rĂtmicas que permitem aos seres inventar encontros e relações e inventar a si mesmos como indivĂduos e sociedade. Se os humanos criaram as palavras, as palavras criaram os humanos. E precisam continuar nos criando.
O ritmo e as palavras sĂŁo nossos guardiĂŁes, sĂŁo eles que revestem o planeta, como uma camada de ozĂ´nio sobre o solo, com uma pelĂcula verbal. Enquanto houver poemas, preces e canções numa lĂngua, ela sobreviverá e renascerá, porque eles sĂŁo o eixo em torno do qual giram as outras linguagens, como a ciĂŞncia, a informação, o comĂ©rcio e a economia. Cada pequena comunidade, por menor que seja e por mais dificuldades que tenha, tem seus poemas, canções e preces. Cada ser quer criar a lĂngua, precisa ter suas palavras secretas e sagradas, cada ser tem sua magia encantatĂłria e encantada, senĂŁo nĂŁo existe mais. No nĂł de cada descoberta cientĂfica está uma pergunta poĂ©tica, absurda e sem explicação. Nas pesquisas humanistas, sempre há (ou deve haver) uma metáfora inicial, uma dĂşvida de base ficcional e fantasiosa. Se nĂŁo houver, nĂŁo se pode confiar nela.
Na psicanálise, a reencenação do trauma pela palavra é o caminho para a cura. O lapso revelador, o chiste ou o ato falho são como poemas insurgentes; o lado oculto aparecendo do nada. Sessões de terapia são ritmos e condicionam a linguagem a eles; o tempo de uma sessão dura uma hora e setenta anos e esses setenta anos precisam caber nessa hora.
Nos templos de todos os credos cada reza tem seu tempo, precisa ser recitada com seus ritmos, porque os ritmos das palavras imitam os ritmos do cosmos e das divindades. Sem as palavras inseridas em ritmos nĂŁo se embala o mundo e nĂŁo se transcende.
Em disputas, manifestações, guerras e revoluções, é o ritmo da linguagem que define o bem ou o mal. Basta escutar as falas de um ditador ou de um democrata para distinguir os ritmos. (Minha mãe só lembrava de três palavras pronunciadas pelos soldados nazistas, durante sua estada em um campo de concentração: “Schnell”, “Achtung”, “Celapple” e sei exatamente de que forma essas palavras eram pronunciadas e por que são as únicas de que ela se lembrava. Essas três palavras, afinal, definem a máquina nazista: “rápido, atenção, chamada”).
Todos nossos relacionamentos sĂŁo ritmadamente marcados por palavras: sĂŁo elas que despertam lembranças, seduzem ou repelem, revelam o que queremos esconder, criam empatia ou antipatia. Os ritmos verbais sĂŁo os gestos da fala e os gestos sĂŁo os ritmos do corpo. Na representação verbal da vida, na tragĂ©dia, na comĂ©dia, feiras pĂşblicas, circos, nos anfiteatros, em palcos montados com palha ou pedaços de madeira, nas cavernas e diante de bolas de cristal sĂŁo os ritmos das palavras que anunciam a sorte ou o azar, a continuidade ou o fim, a manutenção ou a revolução. NĂŁo consigo pensar em um relacionamento amoroso que nĂŁo tenha por trás uma rima, uma canção, um filme, qualquer ritmo poĂ©tico e nem em um grande movimento polĂtico, da extrema esquerda Ă extrema direita.
É por isso que sĂŁo as sĂlabas que sustentam o mundo e Ă© do manto de Deus que elas jorram.
Mas elas estĂŁo se extinguindo.
Os discursos inumeráveis estĂŁo em processos mais lentos ou mais rápidos de desritmização e as sĂlabas estĂŁo perdendo sua razĂŁo de ser. Em primeiro lugar, a voz: a voz escrita (emojis, figurinhas, abreviações, Ăcones de todos os tipos) vem substituindo a voz falada e passamos a nos relacionar com o outro cada vez menos pela voz, mas pelo texto. É certo que o texto escrito tem ritmos, inĂşmeros tambĂ©m, mas despossuĂdos do som, que modula, nuança e personifica o ritmo. A voz online, em que cada pessoa obrigatoriamente fala uma de cada vez, tambĂ©m está homogeneizando e centralizando os ritmos coletivos, os diz-que-diz, as alturas e tons, a balbĂşrdia, as tosses, os pigarros, as simultaneidades dos grupos. A rapidez e pragmatismo das relações virtuais (nĂŁo tĂŁo condicionadas a imprevistos) simplifica as orações, as palavras e as emoções, descoladas das expressões faciais e do olhar. Essa simplificação, Ă© claro, diminui as sĂlabas e, portanto, os ritmos. A ausĂŞncia de simultaneidade na virtualidade impede e dispensa os ritmos desconhecidos e imprevistos.
A perda da prosĂłdia, da musicalidade, do som da voz, a perda dos rituais coletivos, da poesia falada e escrita, das canções, das histĂłrias, dos circos, das festas Ă© a perda de um certo mundo, em que os ritmos — os conhecidos e os desconhecidos, repetidos ou improvisados, necessários ou casuais — imitam o cosmos e definem encontros. Nas sĂlabas, enquanto as consoantes obstruem a respiração, a vogal a estende, combinando as limitações humanas com aspirações ao infinito e o outro; sem elas, ficamos confinados Ă mesmice e ao eu e o manto de sĂlabas do deus indiano se desfaz de desgosto.