De vez em quando, amigo (a) leitor (a), alguĂ©m pergunta que livro eu gostaria de ter escrito. Sempre acho essa interpelação meio ofensiva, porque, de alguma maneira, parece partir do pressuposto de que os livros que escrevi nĂŁo prestam… Mas, claro, sei, nĂŁo Ă© isso, trata-se apenas de uma pergunta-padrĂŁo, que faz parte de um questionário tacitamente obrigatĂłrio, assim como “indique escritores (ou escritoras) contemporâneos (ou contemporâneas) que dialogam com sua obra”, “quais foram os autores (ou autoras) que o influenciaram”, “que dicas vocĂŞ daria para alguĂ©m que está começando a escrever”, etc.
Pois bem, nunca sei responder a pergunta inicial, motivadora dessas linhas… Mas dia desses meu interesse foi despertado pelo tĂtulo de um livro que acendeu em mim uma luzinha daquele sentimento horrĂvel, condenado no dĂ©cimo mandamento — a lei mosaica, lembra? — e que está inscrito no livro de ĂŠxodo, capĂtulo 20, versĂculo 17: NĂŁo cobiçarás coisa alguma do teu prĂłximo. E eu cobicei, confidente leitor (a)…
O livro em questĂŁo se intitula Lugar nenhum – um atlas de paĂses que deixaram de existir – 1840-1975… Como nĂŁo tive essa ideia antes?! Mas o mĂ©rito Ă© do arquiteto Bjorn Berge que o escreveu, de Leonardo Pinto Silva que o traduziu diretamente do original norueguĂŞs e da simpática editora Rua do SabĂŁo, de Santo AndrĂ© (SP), que o publicou. E aqui o descrevo breve, mas apaixonadamente.
Bjorn Berge dedica quatro páginas, em mĂ©dia, a cada um dos 50 paĂses que nĂŁo constam mais do mapa-mĂşndi, desde alguns longevos, como as ĂŤndias Ocidentais Dinamarquesas, que duraram 163 anos, entre 1754 e 1917 (hoje rebatizadas como Ilhas Virgens, pertencentes aos Estados Unidos), e outros que duraram apenas um verĂŁo, como Allenstein, em 1920, hoje territĂłrio polonĂŞs; de paĂses populosos, como Manchukuo, hoje parte da China, com 31 milhões de habitantes, ou lugares sem residentes fixos, como as Ilhas Shetland do Sul, pertencente Ă Antártida; desde territĂłrios imensos, como a RepĂşblica do Extremo Oriente, com quase 2 milhões de quilĂ´metros quadrados, hoje incorporada Ă RĂşssia, atĂ© Heligoland, de 1,7 quilĂ´metro quadrado, agora parte da Alemanha.
O autor se vale de textos literários e documentos oficiais para descrever, com inteligĂŞncia, erudição e bom-humor, aspectos histĂłricos, geográficos, polĂticos e econĂ´micos dos paĂses em questĂŁo — mas, principalmente, ele se ancora na evocação de sua inacreditável coleção de selos, cuidadosamente reproduzida. Aliás, ressalte-se, a edição toda Ă© um primor de bom gosto, desde a escolha da elegante famĂlia de tipos atĂ© a seleção das cores usadas no texto — e, se há algo a ser reparado, apenas a manutenção dos nomes noruegueses nos pequenos mapas, que, se acrescenta um toque exĂłtico ao livro, no entanto impede que o leitor os desvende de imediato.
PorĂ©m, esse pequeno senĂŁo nĂŁo macula a beleza e o interesse por esse livro, que nĂŁo nos incita apenas a curiosidade — o que já seria um mĂ©rito, numa Ă©poca em que nada mais nos espanta —, mas principalmente nos adverte para o fato de que nada, nem mesmo paĂses, dura para sempre…
Luz na escuridĂŁo
Roniwalter Jatobá, romancista, contista, cronista:
“Em 2013, como fazia quase todo ano, pegava o carro em SĂŁo Paulo e encarava uma longa estrada para chegar ao sertĂŁo baiano, onde vivia minha famĂlia. Desta vez, apĂłs cruzar a cidade de VitĂłria da Conquista, resolvi fazer um caminho diferente, como se algo misterioso me ordenasse deixar a BR-116 (Rio-Bahia) e enveredasse pela BA-142, rumo a MucugĂŞ, AndaraĂ e Lençóis, na Chapada Diamantina. Foi ali que descobri uma cidadezinha chamada Wagner, palco da Escola Americana de Ponte Nova, fundada em janeiro de 1906, que formaria professores para alfabetização e atĂ© tĂ©cnicos em enfermagem para trabalhar no Grace Memorial Hospital, inaugurado em 1926. E Ă© justamente durante 1926 que venho pesquisando um assunto para um possĂvel romance histĂłrico, contando a trajetĂłria da enfermeira americana Evelyn Dobbs e tendo como pano de fundo a violĂŞncia dos jagunços ligados ao coronel Horácio de Matos e um breve perĂodo da grande saga da Coluna Prestes que cruzava a regiĂŁo. Por enquanto, venho entranhando tudo, mas ainda nĂŁo me acho amadurecido para mergulhar nessa aventura. Preciso de mais tempo para observar, compreender e aprofundar. É esse livro, sem tĂtulo, que vou escrever um dia”.
Parachoque de caminhĂŁo
“Estar vivo exige mais do que um simples pãozinho com manteiga.”
Alfred Döblin (1878-1957)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Raimundo Correia
(SĂŁo LuĂs, MA, 1859 – Paris, França, 1911)Â
Mal secreto
Se a cĂłlera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espĂrito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, entĂŁo piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recĂ´ndito inimigo,
Como invisĂvel chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja aventura Ăşnica consiste
Em parecer aos outros venturosa!
(Sinfonias, 1883)