(11/12/20)
CarĂssimo leitor/a, por favor, imagine comigo a cena: o ano Ă© 1935 (ou qualquer outro, no passado, escolha aĂ, nĂŁo importa!) e o lugar Ă© Rodeiro, arraial perdido no interior de Minas Gerais. Os colonos, italianos, a maioria analfabetos, vivem na roça e sĂł vĂŁo Ă cidade aos sábados, para ferrar os cavalos, promover algum negĂłcio e fazer compras, e aos domingos, para a missa na igreja de SĂŁo Sebastiao – nestes dias, eles se informam sobre o que vai pelo mundo. Aparece por lá, entĂŁo, um sujeito metido a sabido e começa a espalhar a notĂcia na comunidade: a Terra Ă© plana! Os colonos se olham, reĂşnem-se com o padre e tomam uma decisĂŁo: convocam a famĂlia do dito para interná-lo em Barbacena, que, na Ă©poca, era para onde conduziam os malucos.
Façamos agora um forward – que Ă© como, em bom portuguĂŞs, os antenados falam agora vamos para a frente. Estamos em 2019 (nĂŁo vou escrever “estamos em 2020”, porque com esse ano já estou por aqui!), em, digamos, SĂŁo Paulo. Abrimos o computador e nos deparamos com centenas de sites liderados por influencers, youtubers, booktubers, etc., seguidos por milhares de pessoas que acreditam, piamente, que a Terra… Ă© plana… Gente de todo tipo, com acesso imediato Ă s mais diversas fontes de informação, e que em pleno sĂ©culo 21 acredita piamente que a Terra Ă© plana!… Trezentos anos antes de Cristo, AristĂłteles escreveu, em bases empĂricas, que a Terra era um cĂrculo nĂŁo muito grande, e, pouco depois, ErastĂłstenes mediu cientificamente a sua circunferĂŞncia, com uma precisĂŁo impressionante – errou por menos de 1%.
Onde foi que o trem da Humanidade descarrilhou?!
Que imbecis preguem que a Terra Ă© plana e que outros imbecis acreditem nessa ideia, acaba sendo apenas uma manifestação coletiva de imbecilidade – lamentável, mas inofensiva. O problema Ă© quando a ciĂŞncia começa a perder terreno em outras áreas. Pesquisa Datafolha realizada no começo de novembro indica que 30% dos moradores de Recife, 24% do Rio de Janeiro, 23% de SĂŁo Paulo e 21% de Belo Horizonte rejeitam vacinar-se contra a covid-19. E um estudo patrocinado pela Universidade de BrasĂlia revela que a origem da vacina interfere nessa rejeição: se for chinesa, em 16%, se for russa, em 14%. Isso porque – opiniĂŁo minha, nĂŁo conclusĂŁo do estudo – muitos acreditam que a RĂşssia e a China sĂŁo paĂses… comunistas!… E a vacina, sei lá, poderia torná-los comunistas tambĂ©m…
Há uma passagem no magnĂfico livro Sobre a fĂ© e a ciĂŞncia (Rio de Janeiro, Agir), diálogo entre o religioso Frei Betto e o fĂsico Marcelo Gleiser, em que chegam Ă seguinte conclusĂŁo: a ciĂŞncia Ă© a narrativa que tenta explicar “como” o mundo existe, enquanto a religiĂŁo Ă© a narrativa que tenta explicar “por que” o mundo existe. A ciĂŞncia nĂŁo pode tentar explicar “por que” o mundo existe, nem a religiĂŁo pode tentar explicar “como” o mundo existe, pois sĂŁo campos de saber exclusivos, um baseado na razĂŁo, outro na fĂ© – o que permite que uma pessoa sensata possa, ao mesmo tempo, acreditar em Deus e reconhecer o poder da ciĂŞncia.
O problema Ă© quando surge alguĂ©m com a bazuca da irracionalidade. Usei – pode conferir, leitor/a – o verbo “acreditar” para designar a crença na existĂŞncia de Deus e tambĂ©m para referenciar os terraplanistas, os entusiastas do movimento antivacina, os convictos de que a RĂşssia e a China sĂŁo paĂses comunistas. Acreditar em Deus Ă© uma questĂŁo de fĂ© – mas duvidar que a Terra seja redonda, que a vacina nos proteja comunitariamente contra doenças, que a RĂşssia e a China sejam apenas ditaduras neofascistas assenta-se no solo fĂ©rtil da descrença na razĂŁo.
NĂŁo há como argumentar contra alguĂ©m que se aferra a verdades absolutas e irracionais. O Homem nĂŁo foi Ă Lua, Elvis Presley nĂŁo morreu, o governo Bolsonaro acabou com a corrupção, a covid-19 Ă© uma invenção para diminuir o nĂşmero de idosos e doentes no mundo, os alienĂgenas já vivem entre nĂłs, os brancos sĂŁo uma raça superior, o Holocausto nĂŁo existiu, a vacina chinesa ou russa Ă© um chip para controlar nossos movimentos, etecetera e tal. Estamos renunciando Ă razĂŁo porque a razĂŁo exige um raciocĂnio complexo, para o qual, parece, nĂŁo estamos mais habilitados…
Que tempos!
Luz na escuridĂŁo
Renata Belmonte, romancista, contista: “O quanto as estruturas sĂŁo capazes de determinar o destino e escolhas de um sujeito? E, na equação da vida, qual Ă© o peso do desejo, do exercĂcio do arbĂtrio individual? Estas perguntas orientam a construção do meu novo livro. Eu sempre começo a escrever a partir de determinadas interrogações e, neste trabalho, investigarei a histĂłria de uma famĂlia de estrangeiros, radicada no Brasil, cuja incomunicabilidade entre seus membros Ă© colocada Ă prova, quando eles se deparam com um fato gravĂssimo, capaz de destruir o futuro de todos eles. Sou muito interessada nos limites da linguagem e nos conflitos entre as pessoas e suas comunidades de origem. Este projeto pode ser entendido como uma continuação do meu mais recente romance Mundos de uma noite só”. Este livro pode ser adquirido aqui.
Parachoque de caminhĂŁo
“Talvez a verdadeira felicidade esteja na convicção de que se perdeu irremediavelmente a felicidade. Então começamos a movimentar-nos pela vida sem esperanças nem medos, capazes de fruir por fim todos os pequenos prazeres, que são os mais perduráveis.”
Maria LuĂsa Bombal (1910-1980)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Ferreira Gullar
(São Luiz, MA, 1930 – Rio de Janeiro, RJ, 2016)
Poemas portugueses (7)
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.
(A luta corporal, 1954)