🔓 O fogo

Elemento presente desde os primórdios do Brasil, o fogo continua consumindo a nossa memória coletiva
Ilustração: FP Rodrigues
13/08/2021

Houve época, distinto (a) leitor (a), que o fogo era um expediente muito usado na literatura brasileira. Basta lembrar que foi um incêndio que devorou O ateneu (1888), de Raul Pompéia, e outro que pôs fim a O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, ambos os romances hoje obras canônicas. Nos dois casos, o fogo servia para marcar o fim de uma era, com o apagamento do passado. Apagamento do passado, aliás, que é a tônica do nosso país, já que não conseguimos lidar com nossas memórias coletivas, feitas de sangue, injustiça e logro.

Não é de admirar, portanto, que, em menos de três anos, tenhamos visto queimar dois dos nossos maiores acervos da memória cultural: o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 2018, e um galpão da Cinemateca Nacional, em São Paulo, no dia 29 de julho último. Não se trata de fatalidade – trata-se de desprezo mesmo. Um desprezo por tudo que nos colocaria com o nariz para fora da barbárie. Não é à toa que elegemos – sim, querido (a) leitor (a), nós, coletiva e democraticamente – esse ser abjeto na presidência da República, que representa o que há de mais vil e torpe num ser humano.

O Museu Nacional, fundado em 1818, por Dom João VI, possuía o mais importante acervo de história natural da América Latina, com 20 milhões de itens, com ênfase em paleontologia, antropologia, geologia, zoologia, arqueologia e etnologia biológica. A instituição possuía uma das mais importantes coleções de fósseis de dinossauros do mundo, múmias andinas e egípcias e outros artefatos importantes – tudo queimou, junto com os 537 mil livros da Coleção Francisco Keller… Já no galpão da Cinemateca Nacional estavam guardadas cerca de quatro toneladas de documentos sobre políticas públicas de cinema no Brasil, além de películas e arquivos…

Ateando fogo caçamos indígenas e ateando fogo combatemos os quilombos – essa ideia está tão arraigada em nossa memória coletiva que continuamos, em pleno século 21, ateando fogo em indígenas e sem teto que a sociedade empurra para as ruas. Colocamos fogo nos documentos que nos exibiam as páginas vergonhosas da escravidão, colocamos fogo nas comunidades para facilitar a especulação imobiliária, colocamos fogo nas florestas, queimando flora e fauna, para ampliar as fronteiras agrícolas…

A barbárie usa o fogo para impor a barbárie.

Luz na escuridão
Maria Carpi, poeta:

“No início da pandemia, após ter escrito uma Carta aos netos, publicada no jornal Zero Hora, tive a necessidade de ir mais além e escrever um livro infantojuvenil: O Quebra-galho e o Faz de Conta, publicado pela Ar do Tempo. Já dispunha das duas alegorias dos nomes de que empregamos no dia a dia, representando assim a Prosa e a Poesia da existência. A Prosa é tudo o que fazemos, enquanto a Poesia são os nossos sonhos que, na escrita, fazem a transferência de sentido com as figuras de linguagem, especialmente as metáforas. Acredito que não há a distinção entre poesia para adultos e poesia para criança. A infância de cada pessoa é o espaço onírico da poesia. É o baú onde guardamos as melhores lembranças do brinquedo. O livro das páginas não escritas da imaginação e criatividade infantis. Comecei por situar os dois irmãos em uma aldeia a beira de um rio, onde o prosaico e o poético pudessem dialogar (seria a Macondo de García Márquez, um sítio da invenção criadora), pois, para a vida ser plena, temos de inserir poesia em nosso cotidiano, na prosa da existência. Percebi que, após ter escrito o texto – como não há distinção entre poesia para adultos e poesia para crianças – esse livro é também para os leitores de todas as idades”.

Parachoque de caminhão
“Estamos cercados de vulgaridade e inevitavelmente sufocamos todos os dias em burrice.”
Thomas Bernhardt (1931-1989)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Dora Ferreira da Silva
(Conchas, SP, 1918 – São Paulo, SP, 2006)

Cidade

Aqui se cava um túnel:
Poço sem água, serpente do vazio.
Passos na terra negra.
Homens golpeiam, dorso arqueado,
Braços de veias túmidas.
O mundo se aperta, a vida engorda,
muito. A erva insiste nas frestas,
no capim nascem estrelas de ouro.
Dois velhos serram um tronco,
Longo trabalho, um de cada lado.
No espaço, a mesma lua, magro perfil.
Gente rente ao chão, tristeza nos farrapos.
Faróis ferem a tarde que se abate.
Iminente a noite e as frias luzes
de tantas possíveis palavras.
Silêncio: muda é a melancolia e sua ronda.

(Poesia reunida, 1999)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho