Os prazos editoriais quase sempre enlouquecem os que neles estĂŁo enredados e, o que Ă© o cotidiano deste meio, torna-se superlativo quando o tema do colunista Ă© polĂtica pĂşblica em um paĂs que somente conhecerá seu destino vinte dias apĂłs essas linhas terem sido escritas.
Nesse contexto é inevitável rabiscar os desenhos das possibilidades tendo como bases reais a história presente e passada, imaginando o que poderemos evitar e o que provavelmente iremos enfrentar se a votação popular consagrar a pior opção do ponto de vista da democracia, da inclusão social e do desenvolvimento sustentável.
Tudo estaria quase perfeito nessa formulação de hipĂłteses futuras se nĂŁo estivĂ©ssemos no Brasil apĂłs seis anos de um golpe antidemocrático e regressivo que trouxe Ă s claras as estruturas mais perversas de nossa histĂłria, como o autoritarismo, o escravismo, o racismo, a xenofobia e o engodo como prática polĂtica. Soma-se ao difĂcil Brasil o nosso planeta, que vive uma profunda crise econĂ´mica, social e de valores que ainda requer um entendimento das ciĂŞncias polĂticas, sociais e filosĂłficas.
Para quem já viveu e estudou algumas décadas, retornam agora à mente as muitas análises de várias correntes à esquerda ou conservadoras, pensadores que refletiram sobre o nosso mundo pós Segunda Guerra Mundial que arquitetou uma sociedade que parece se consolidar para alguns, mas, que para outros, parece estar a um passo de sua derrocada fatal.
Pressionados pela lĂquida imediatez das respostas curtas e rápidas, os cidadĂŁos comuns, principalmente aqueles poucos que sĂŁo privilegiados pelo acesso e compreensĂŁo das diversas leituras, se veem hoje encurralados nas possibilidades mais assustadoras que lhes trazem imagens de um passado recente quando o pior dos seres humanos veio Ă tona deixando um rastro de Ăłdio, perversidade e morte.
NĂŁo Ă© para menos os muitos espantos que nos deparamos cotidianamente. Afinal, como o nĂŁo especialista em polĂtica poderia vislumbrar o renascimento do fascismo e do nazismo como possibilidades de governo, ainda mais apoiados por parcelas consideráveis da população em plena terceira dĂ©cada do sĂ©culo 21? Ou que, aquilo que o mundo ocidental considerou atĂ© há pouco tempo um modelo polĂtico reservado apenas a paĂses do oriente, considerados atrasados social e politicamente, como os regimes dos aiatolás e suas teocracias comandando os Estados, estivesse ascendendo tĂŁo rapidamente em partes do ocidente, inclusive no Brasil, com as igrejas e seus comandantes impondo seu poder no Estado liberal e laico?
InĂşmeros exemplos de regressões de várias ordens, que implicam perda de direitos civis e democráticos, grassam por este mundo e em nosso paĂs justamente no movimento ascendente das tecnologias que desnudam em tempo real o presente e o passado a um toque de dedos, bastando o acesso Ă virtualidade da internet. NĂŁo podemos nem alegar desconhecimento da histĂłria porque canais de acesso aberto mostram com profusĂŁo todos os fantasmas do passado que voltam a nos atormentar social e individualmente.
Resta-nos perguntar se a maioria compreende essa abundância de informações que recebe e, compreendendo-a, exerce com consciĂŞncia seu direito Ă crĂtica ou Ă adesĂŁo. O tema Ă© vasto, tratado em variadas perspectivas, mas as reflexões sobre o tema do pĂşblico e do privado e da crise da ideia de polĂtica, tem me atraĂdo particularmente e me levado a leituras ou releituras de autores instigantes que formularam raciocĂnios seminais e que nĂŁo podemos desconsiderar quando procuramos entender o atual estado da arte das relações humanas. É inevitável pensar em alguns deles nesses dias de espera. E se a espera Ă© angustiante, as possibilidades ou impossibilidades de vários pensadores que leio sĂŁo igualmente angustiantes ao nos demonstrarem o tamanho de nossos problemas civilizatĂłrios.
De autores liberais clássicos, como Tocqueville e suas reflexões sobre os males do individualismo que afastam os homens das virtudes da esfera pĂşblica, chegando a contemporâneos como Richard Sennet, Daniel Innerarity, Zygmunt Bauman, entre outros, várias leituras iluminam aspectos que dialogam entre si ao apontar tanto o fenĂ´meno do repĂşdio Ă ideia de coletividade, de comunidade, de polis, quanto a inseparabilidade deste distanciamento do comum com a construção de indivĂduos cada vez mais alienados pela prĂłpria dinâmica do desenvolvimento capitalista.
Nesse contexto, e como assinala Sennet em seu famoso livro O declĂnio do homem pĂşblico (Record, 2014), ao celebrar o gueto, o isolamento, a “experiĂŞncia humana Ăntima e local”, o que se perde “é a ideia de que as pessoas sĂł podem crescer atravĂ©s de processos de encontro com o desconhecido. (…) O amor pelo gueto, especialmente o gueto de classe mĂ©dia, tira da pessoa a chance de enriquecer as suas percepções, a sua experiĂŞncia, e de aprender a mais valiosa de todas as lições humanas: a habilidade para colocar em questĂŁo as condições já estabelecidas de sua vida”.
Leio essas reflexões sobre a apologia da crĂtica Ă ideia de comunidade, de coletivo, de sociedade que molda as pessoas e rebaixa o cidadĂŁo, como a antĂtese da ideia de polĂtica que sĂł Ă© genuĂna e digna de ser quando sua dinâmica Ă© a revolução da prĂłpria polĂtica.
NĂŁo Ă© Ă toa que o Ăłdio a pensadores como o educador Paulo Freire está tĂŁo disseminado pelo atual governo defensor das meritocracias e da exaltação de governantes “gerentes”. Odiá-lo Ă© eliminar ou tergiversar sobre o lugar e a pertinĂŞncia necessária do cultivo Ă Ăşnica polĂtica possĂvel, aquela que existe para questionar, dialogar, conhecer e transformar. NĂŁo nos esqueçamos da primeira frase de Freire em seu seminal Educação como prática da liberdade (Paz e Terra, 2021): “NĂŁo há educação fora das sociedades humanas e nĂŁo há homem no vazio”. A revolução educacional e a visĂŁo social de Freire tĂŞm os pĂ©s firmes na verdadeira ideia de polĂtica, a que demonstra sĂłlida opção pelo diálogo nĂŁo autoritário, pelo reconhecimento dos conhecimentos diversos dos homens e pela absoluta adesĂŁo Ă ideia de comunidade de sujeitos: “… na prática democrática e crĂtica, a leitura do mundo e a leitura da palavra estĂŁo dinamicamente juntas. O comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos Ă experiĂŞncia comum dos alfabetizandos e nĂŁo de palavras e temas apenas ligados Ă experiĂŞncia do educador.” (A importância do ato de ler, Cortez Editora, 2021)
Nada mais distante de Freire do que a dura realidade demonstrada pelo livro de Bruno Paes Manso, A repĂşblica das milĂcias (Todavia, 2020), que na sua página final dispara: “Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia de violĂŞncia redentora. Diante da crise econĂ´mica e da descrença na polĂtica, os eleitores escolheram um justiceiro para governá-los”.
Neste entreato de quem espera os resultados de seu destino, penso que recuperar a ideia de polĂtica como possibilidade Ăşnica de viabilizarmos as relações humanas Ă© uma batalha possĂvel e que nĂŁo podemos perder. Josep Ramoneda, prefaciando o livro de Innerarity (A polĂtica em tempo de indignação, LeYa, 2017), sintetiza isso em trĂŞs ideias de uma possĂvel construção: “a polĂtica como Ăşnico poder ao alcance dos que nĂŁo tĂŞm poder”; “nĂŁo há pior fantasia do que a de uma sociedade sem polĂtica e com Estados limitados Ă s funções de controle e vigilância” dando espaço para as máfias, o crime e poderes nĂŁo democráticos; “o grande desafio da polĂtica Ă© manter autonomia em relação aos poderes econĂ´micos, estabelecendo limites…”.
Se a humanidade e, particularmente, o Brasil conseguirem dar esses passos recuperadores na polĂtica, poderemos vislumbrar a perspectiva de uma sociedade do diálogo, da democracia, da inclusĂŁo, do reconhecimento das diversidades e do desenvolvimento ecologicamente sustentável. Sem isso, será a barbárie estabelecendo o imponderável.