* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
A existência de negros milionários, a transformação de ativistas e militantes antirracistas em “celebridades” ou a arregimentação de figuras negras para garotos ou garotas-propaganda, influenciadores e similares por parte das grandes corporações capitalistas dominadas por grandes burgueses brancos será útil à luta pela abolição do racismo antinegro e do racismo em geral?
Tenho pensado nisso com frequência, embora não tenha uma ideia feita. Mas acredito que o debate faz todo o sentido. Por isso, resolvi partilhar com os leitores, na coluna de hoje, algumas ideias e reflexões preliminares sobre o assunto.
Para mim, toda a análise social precisa de partir da história e de estudar as condições materiais que levaram ao surgimento dos diferentes fenómenos e problemas. A primeira questão que me coloco, pois, a fim de desenvolver o tema a que me propus hoje, é: como surgiu historicamente o racismo antinegro? Coincidirá ele, cronologicamente, com a escravatura?
A resposta parece ser “não”. Historicamente, a escravatura precede o racismo. De facto, há vários exemplos que confirmam a existência da escravatura nas civilizações antigas, sem racismo. Se não houvesse, como há, outros exemplos, bastaria mencionar a existência da escravatura nas próprias sociedades africanas, na maioria negras, para confirmá-lo. Mesmo o tráfico de escravos negros iniciado com a expansão marítima europeia, depois do século 15, contou, sabe-se hoje, com a colaboração de comerciantes e líderes negros, alguns deles celebrados como “heróis”.
Recordo Muniz Sodré: o “racismo científico” é uma invenção dos brancos europeus no século 18 (mais exatamente, da antropologia europeia da época). Ora, é impossível deixar de observar que isso coincide com a ascensão histórica do capitalismo. Tratava-se, quanto a mim, de formular uma explicação/legitimação puramente ideológica para a transformação, operada pelo capitalismo, dos indivíduos escravizados em simples mercadoria.
Durante a longa vigência do capitalismo liberal (o qual, curiosamente, coincidiu com o colonialismo), portanto, a formação de classes foi racialmente orientada, ao mesmo tempo que a constituição das raças foi economicamente determinada, tal como ensinaram Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, no magistral e definitivo Raça, nação e classe.
Para resumir, a principal tendência nesse período, pelo menos para o que me interessa neste artigo, foi a proletarização dos negros. Assim, nas colónias europeias em África, o surgimento de uma burguesia negra foi inviabilizado por todos os meios, como sucedeu, por exemplo, em Angola, onde o ditador português António de Oliveira Salazar aplicou uma política, a partir dos anos 30 do século 20, que “matou” a nascente burguesia rural local. Quanto à diáspora negra, recordo o massacre de Tulsa, no estado americano de Oklahoma, no dia 31 de maio de 1921, quando uma multidão de pessoas brancas invadiu e destruiu o distrito de Greenwood, que na época era uma das comunidades negras mais prósperas dos EUA, chamada a “Wall Street Negra”.
A proletarização dos negros, durante o período do capitalismo liberal/colonialismo, explica a aproximação política ocorrida, sobretudo a partir da 2ª Guerra Mundial, após a vitórias das revoluções socialistas no mundo, entre os movimentos antirracistas e anticolonialistas e o marxismo. Essa aproximação, entretanto, não impediu a existência de contradições entre eles, motivadas por vezes (mas não só) pelas dificuldades dos revolucionários brancos em compreender as especificidades do racismo. O próprio Marx as tinha.
A razão para isso é simples: como toda a ideologia, o racismo autonomizou-se em relação às suas condições materiais de produção. Isso explica, ao mesmo tempo, a oposição da burguesia branca ao surgimento de uma burguesia negra, os preconceitos raciais de alguns brancos pobres e as dificuldades de setores da esquerda em compreender e participar, de forma plena e radical, na luta antirracista.
O advento do neoliberalismo, visível a partir dos anos 80 do século 20, mas que já vinha sendo “preparado” por certas transformações tecnológicas anteriores, em especial no campo dos transportes, das comunicações e da informática, veio introduzir mudanças importantes nesta problemática. Convém assinalar, também, que o velho colonialismo praticamente acabara no continente africano ao longo dos anos 60, com exceção das antigas colónias de Portugal, tendo sido substituído por formas de neocolonialismo que se mantêm até hoje.
Nesta “nova ordem” (neoliberal e neocolonial), a existência de burguesias negras é possível. Não vou tratar, aqui, dos processos de formação dessas burguesias negras, em especial nas antigas colónias, pois, honestamente, não vislumbro diferenças essenciais entre o modo como as mesmas estão a ser constituídas e a maneira como as burguesias brancas, europeias e americanas, surgiram historicamente. A pergunta que volto a fazer é: a possibilidade de existência de uma burguesia negra (ou simplesmente de negros “endinheirados”) resolve o problema do racismo antinegro?
Tenho duas dúvidas. A primeira é até que ponto usar fotos de celebridades negras como capa da Vogue ajudará a superar a ideologia racista, sem desmontar o sistema que mantém a maioria dos negros e outros grupos desfavorecidos em situação de discriminação. A segunda é qual será a postura dos negros “privilegiados”, a partir do momento em que passarem a ter acessos e regalias negadas à quase totalidade do seu grupo?
O surgimento do capitalismo neoliberal, caracterizado pela crescente financeirização da economia e potenciado até ao limite pelas novas tecnologias de comunicação, implicou o fim das grandes metanarrativas do século passado e das estratégias comuns de organização da existência, quer pessoal quer coletiva, cada vez mais substituídas por um individualismo feroz e um particularismo levado ao extremo. O capital funciona cada vez mais desligado das suas condições de produção, o que tem uma consequência: acirra o seu poder de alienação. No plano social, contribui para a fragmentação ilimitada dos diferentes grupos, como se assiste presentemente com os novos “tribalismos” de raça, cor de pele, género, opção sexual, peso, dieta alimentar, consciência ecológica, atitude em relação aos animais – que sei eu? -, enfraquecendo a luta pelo fim de todas as discriminações, por uma maior justiça social e por uma humanidade genuinamente compartilhada.
O “antirracismo neoliberal” parece-me, assim, um oximoro perfeito.