* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
Do livro Rio sem margem, do angolano Zetho Cunha Gonçalves, disse o festejado romancista brasileiro Miltom Hatoum: “Poemas belíssimos. Este livro é uma pequena obra-prima da literatura oral africana. Só por preconceito ou incompreensão a literatura oral é menos lida e estudada que a literatura escrita. Os poemas são belíssimos e vêm dos tempos imemoriais ou do mito: tempo fora do tempo. Poesia oracular. Alumbramentos, como dizia Manuel Bandeira”.
Rio sem margem faz parte da primeira antologia completa de Zetho Gonçalves, Noite vertical, que abarca toda a sua produção poética (depurada, revista e… validada) durante 42 anos (1979-2021), lançada em maio em Lisboa. Sugiro vivamente aos leitores brasileiros (e não só) que não conheçam este autor que leiam com urgência essa obra monumental, para confirmarem a leitura de Hatoum. De igual modo, hão de concordar, estou certo, com as palavras do articulista do jornal português I José Carlos Pereira, que nos relembrou a todos, a propósito desta antologia de ZCG, que “todas as tradições orais têm também os seus gregos”.
Noite vertical é um livro radical e profundamente angolano e, ao mesmo tempo, universal. Nele reverberam, assim, quer as imagens telúricas da natureza, as lições dos ancestrais, os mitos, os provérbios e as adivinhas tradicionais angolanas, sem esquecer as vozes literárias nacionais que antecederam o autor, como Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Ruy Duarte de Carvalho e outros, por exemplo, quer os ecos dos grandes poetas universais, como Holderlin, Lao, Ezra Pound e Otávio Paz, bem como de alguns dos grandes autores de língua portuguesa, como António Ramos Rosa, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luís Carlos Patraquim.
Uma das mais fecundas vertentes do trabalho poético de Zetho Gonçalves é a “tradução” e sobretudo a recriação (mediante a sobreposição, a colagem e outras técnicas) das literaturas orais tradicionais, sobretudo angolanas, mas incluindo também produções de outras regiões e povos africanos e até dos povos originários das américas. Podem ainda ser encontrados em Noite vertical ecos da musicalidade das poéticas orientais, assim como vários e belíssimos textos de prosa poética. O autor transita com absoluto à vontade e mestria entre o texto breve, quase epigramático, e os poemas longos, em todos demonstrando uma técnica irrepreensível, que atesta do rigor do seu labor. A profunda revisão que sofreram muitos dos poemas que compõem esta antologia confirma que Zetho é, antes de mais nada, exigente consigo mesmo, antes de ser, tal como é conhecido entre os seus pares, um crítico ácido do trabalho alheio.
Uma nota adicional à observação feita atrás de que Noite vertical é um livro “profundamente angolano”: a antologia que reúne toda a produção poética de ZCG durante 42 anos amplia, na verdade, aquele que é considerado, até agora, o cânone da literatura angolana moderna, o qual é eminentemente urbano e focado em Luanda e mais uma ou duas cidades, introduzindo geografias, saberes e vivências que é raríssimo encontrar nos textos literários nacionais. Além de Zetho Gonçalves, apenas Ana Paula Tavares tem explorado essa “tradição”, melhor dizendo, essa outra realidade angolana, de matriz rural, a qual, a rigor, é perfeitamente contemporânea (não é, pois, “tradicional”). Mas o autor de Noite vertical o faz com maior profundidade.
A vivência de ZCG explica parcialmente a nota que acabo de fazer. De facto, nascido no Huambo, no centro de Angola, de pais portugueses e avó angolana, o poeta cresceu no Cutato, uma localidade situada na hoje província do Cuando Cubango, sudeste do país, designada no período colonial como “As terras do fim do mundo”, expressão que diz tudo. Ali o poeta fez-se jovem, aprendeu a língua local (luvale), conviveu com a natureza e as comunidades da região, sobretudo rurais. E, como escreve num dos poemas de Noite vertical descobriu a poesia:
E eu vi
o canto e a manhã primeira irromperem
do redivivo coração da pedra alta
em seu aroma sábio, pela raiz.
Eu vi.
(…)
O alfabeto da Terra semeia seus dons e lucidez.
– Implacáveis. Os dedos
apreendem seus astros caligráficos: as veias
e artérias primitivas da pedra
e do fogo
batendo em mim
a Poesia inteira.
Depois da Revolução dos Cravos em Portugal, a 25 de abril de 1974, que abriu caminho igualmente às independências das antigas colónias portuguesas em África, Zetho Gonçalves, então com 15 anos de idade, foi apanhado, como todos os angolanos ou residentes no país, pela voragem dos acontecimentos político-militares da época. Filiou-se na organização juvenil da FNLA, um dos movimentos nacionalistas, e, nessa condição, participou na guerra civil que, em março de 1975, eclodiu no país entre os três partidos (além da FNLA, os outros eram o MPLA e a UNITA). A guerra civil pré-independência foi vencida pelo MPLA, que proclamou a República Popular de Angola no dia 11 de novembro de 1975. Militarmente derrotadas, a UNITA e a FNLA tiveram destinos diferentes: enquanto a primeira se refugiou, por coincidência, no longínquo Kuando Kubango, onde se reorganizaria para retomar a guerra contra o MPLA, a FNLA praticamente acabou e todas as suas principais figuras e muitos militantes foram obrigados a exilar-se. Um desses militantes era Zetho Gonçalves, que, após várias peripécias e andanças por alguns países africanos e europeus, desembarcou em Portugal, país de origem dos pais, onde acabou por radicar-se até hoje, com idas esporádicas à sua terra natal.
A história de vida do autor de Noite vertical explicará, precisamente, por que motivo o livro pode ser lido, como o fez José Carlos Pereira, como um grande canto à Terra. Mas não a Terra como “natureza” e, sim, como uma vibração na alma, a Terra como um poema imenso e a única garantia de liberdade, sendo a vida “um ofício da Terra”. A poesia de Zetho Cunha Gonçalves, trabalhada até à exaustão, não parece, entretanto, pensada, pelo menos no sentido de um exercício prévio: é a vida do poeta na Terra (a terra onde nasceu e cresceu, as terras onde a guerra o levou, a terra onde se abrigou) que lhe indica o caminho da poesia. Como? Relembro um verso do excerto acima reproduzido – “O alfabeto da Terra semeia seus dons e lucidez” –, para depois concluir, com o poeta, de que modo se dá esse processo:
Era pela raiz que as coisas pensavam
a exata palavra de seus nomes.
– E ensinam, devagar,
a boca
a soletrá-los
(…)
O poeta, portanto, não inventa nada: aprende com as coisas que vê e vive na Terra. Mas não se pense que fica preso ao passado, ao mundo telúrico onde nasceu e cresceu, à sabedoria dos ancestrais, a todas as vivências por que passou, pelo contrário, Zetho Gonçalves, ao longo de todo o seu trabalho poético, atualiza tudo isso. Por outro lado, não deixa de alerta-nos que é preciso saber como viver na Terra, pois esta, se tudo dá, também tudo pode devorar.
Como toda a poesia digna desse nome, Noite vertical não se limita a reproduzir as experiências e vivências do autor. De igual modo, recusa-se a participar em pseudo militâncias, sejam elas culturais, políticas ou outras, para produzir um trabalho que, ao mesmo tempo que tem os pés bem fincados no chão onde nasceu, se abre e dialoga sem complexos com as restantes e múltiplas poéticas do mundo.
Zetho Cunha Gonçalves consegue isso através do único caminho que todos os escritores precisam de seguir: a linguagem. Consciente e rigoroso, ele trabalha-a demoradamente, sem quaisquer concessões, pois sabe que o alfabeto da Terra é sagrado e, por isso, não pode ser vilipendiado. O poeta deve ser seu guardião e permanente exegeta e recriador. Só ele.
Como escreve no poema O testamento do mundo, ZCG está consciente disso:
Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o sangue,
o arco e a pedra,
a seta envenenada e o fogo.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz deste dizer,
a sua caligrafia
(…)