🔓 Não negociar o inegociável

Carola Saavedra e Itamar Vieira Junior conversam sobre o lugar da literatura e como os deslocamentos interferem na trajetória pessoal e literária
Ilustração: Carolina Vigna
02/01/2021

Conversa com Itamar Vieira Junior

1.
Carola: Começo com uma citação de Deleuze, que tem sido um tema em nossas conversas de Instagram: “As pessoas pensam sempre em um futuro majoritário (quando eu for grande, quando eu tiver poder…). Quando o problema é o de um devir-minoritário: não o fingir, não fazer como ou imitar a criança, o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas tornar-se tudo isso para inventar novas forças e novas armas”. Como “tornar-se tudo isso”? Será algo que se pode aprender ou é mais um ato, um acontecimento à revelia do sujeito?

Itamar: Bom falar em Deleuze. Sabe, Carola, o pensamento sobre o devir, desde Heráclito a Tim Ingold, tem me acompanhado há muito tempo. E Deleuze, sem dúvida, foi o que mais contribuiu para a minha compreensão de que, mais que seres, somos devires humanos. Você recorda a tese sobre o rio de Heráclito? Ninguém se banha no mesmo rio duas vezes? Pois nós não somos os mesmos. Estamos em permanente transformação, o que me soa maravilhoso, radical e inconciliável com as ideias estáticas do pensamento ocidental. É incrível como o pensamento de Deleuze se aproxima da cosmovisão dos povos originários, dessa compreensão da vida como um fluxo. E você me pergunta como “tornar-se tudo isso”? Carregamos esse princípio transformador, essa capacidade de apreensão única que chamamos de educação. A educação é um ato, que independe de sistemas de conhecimentos sistematizados. Vem do latim educere, que significa “ir para fora”. Diz mais respeito à nossa capacidade de aprendizagem, uma capacidade também observada em outras espécies. É a capacidade de aprender, mas também a de se abrir ao mundo, ao outro, de exercitar a alteridade.

Carola: Sabe que por sugestão sua eu li o Tim Ingold, li Estar vivo e fiquei fascinada, e tem tanto a ver com tudo o que venho pensando nos últimos tempos, esse deslocamento de nós mesmos, essa interconexão de fluxos constantes. Aliás, me parece que há muitos pontos em comum entre o Ingold e a Donna Haraway. Sim, Deleuze é, entre tantos filósofos, aquele que mais se aproxima do pensamento dos povos originários, talvez por ele questionar de forma tão veemente a nossa noção de sujeito, um questionamento que vai contra a ideia estática de um núcleo, um “eu” que nos define. Uma das coisas que mais gosto em Deleuze é a forma como ele relativiza a própria noção de inconsciente, e se afasta da ideia de uma história única (a história edípica freudiana). Há ali uma rota de fuga, uma possibilidade outra para a construção de quem somos, não mais um “eu” estático, mas um eu-fluxo (o rio de Heráclito, como você bem lembrou). Sobre a educação, tenho pensado muito na educação como um movimento de nos permitir saber aquilo que sabemos (um saber do corpo, da intuição, do inconsciente, do inconsciente coletivo). Convivendo com minha filha, percebo o quanto há na infância um saber intuitivo profundo, filosófico até, mas também ancestral que está nela e que muitas vezes a nossa arrogância impede de vir à tona. E fazemos isso não só com as crianças…

2.
Carola: Você ministra um curso chamado “Literatura e experiência antropológica”. E eu me lembrei de uma frase do Deleuze: “Não existe literatura que não faça apelo a um povo que ainda não existe”. Venho pensando muito nessas questões tanto relacionadas ao futuro quanto ao passado, a literatura como uma experiência, um fazer coletivo, de todo um povo e não somente de um indivíduo, como nossa sociedade costuma pensar. Uma literatura que se distancia do sujeito construído pelo sistema capitalista e se aproxima de formas de arte muito comum em grupos situados à margem do sistema, do mercado.

Itamar: A literatura é uma das muitas expressões da experiência humana, eu diria. E por se debruçar sobre essa experiência, ela é inesgotável, deve ser plural e importante como fonte de conhecimento sobre o outro. Não um conhecimento sistemático, informativo, mas um conhecimento em linhas mais subjetivas, no campo dos sentimentos, aquilo que nos une em nossa humanidade. Acho que a capacidade de elaborar ficção nos diferencia de outras espécies e nos acompanha desde a chamada revolução cognitiva, que ocorreu entre 70 mil e 40 mil anos atrás. Olho para inscrições rupestres e vejo literatura — ou o que são as novelas gráficas? Recordo das histórias de família e penso nas pessoas que narravam essas histórias tendo que fazer escolhas sobre como começar e terminar para apreender a atenção de quem escutava. A antropologia é uma fonte de conhecimento sobre o outro. Compreendendo o outro somos capazes de alcançar algum nível de entendimento sobre nós mesmos. Se o universo literário é um fazer coletivo, escrever quase sempre é o testemunho pessoal diante desse coletivo.

Carola: Fico pensando se a capacidade de elaborar ficção não é algo que surge com a própria linguagem, pois se eu conto qualquer coisa, por exemplo, fui caçar um javali e voltei, conto como foi, por mais que eu me atenha à realidade, é sempre uma espécie de ficção. Pensemos na memória, o que é a memória além de uma forma de ficção? Suspeito que escolhemos uma das muitas ficções possíveis e lhe demos o nome de realidade e depois fincamos ali uma bandeirinha, como quem chega na lua.

Itamar: Sim, de fato. Por exemplo, vamos nos ater aos dilemas da memória: a memória é sempre uma relação dialógica entre o que escolhemos lembrar e esquecer, mesmo que de maneira inconsciente. E para que esses fios de memória, que julgamos ser “reais” e guardamos com lembranças, façam sentido, preenchemos seus interstícios com ficção. Claro que não com uma ficção fantástica — embora possa ocorrer também —, mas com uma ficção que tenta recriar um mundo de sentido para nossas próprias recordações. E ao repeti-las muitas vezes, elas ganham o sentido da verdade.

3.
Carola: Quando li Torto arado fiquei muito impressionada, e a principal sensação que tive foi o sentimento de que ali havia algo que precisava urgentemente ser dito, ser contado, e que o livro, ao fazê-lo provocava uma espécie de explosão. E como na época eu estava lendo muito a Donna Haraway, não pude deixar de fazer conexões entre as irmãs do seu livro e as relações de simbiose e cooperação propostas por Haraway (em oposição à “lei do mais forte” do capitalismo). Deixo aqui um trecho de cada leitura:

Torto arado: Quando retomamos as brincadeiras, havíamos esquecido as disputas, agora uma teria que falar pela outra. Uma seria a voz da outra. Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar. Para que essa simbiose ocorresse e produzisse um efeito duradouro, as disputas ficaram, naturalmente e por um tempo, de lado. Ocupávamos o tempo com as apreensões do corpo da outra.

Seguir con el problema: Generar parentesco en el Chthuluceno: Vivir-con y morir-con de manera recíproca y vigorosa en el Chthuluceno puede ser una respuesta feroz a los dictados del Antropos y del Capital.

Itamar: Parece que a nossa sobrevivência tem dependido desse laço vital de reciprocidade positiva. Uso aqui o adjetivo positivo para estabelecer uma diferença do significado mais amplo da palavra reciprocidade. Sua leitura me fez pensar na escolha da epígrafe do livro, um excerto de Lavoura arcaica. A intenção era introduzir o leitor no universo da história, embora as histórias guardem grandes diferenças entre si. Enquanto uma descreve a ruína de uma família, a outra mostra a sobrevivência a partir dos laços de solidariedade e parentesco que vão estabelecendo através do tempo. Esse sentimento de família é virtualmente estendido aos membros do grupo de trabalhadores que vivem a mesma tragédia social. Por sua vez se torna a história de um povo, onde o passado ganha a marca indelével de escultor do nosso presente histórico. Se a Globalização e o Capitalismo têm nos impostos fragmentações de modos de vida, devastação e morte através da sua cultura de acúmulo de riquezas e de profundas desigualdades, a cooperação que surge desse confronto perene tem possibilitado o ideal de um outro mundo, de uma outra humanidade.

Carola: Sim, e talvez essa leitura que fazemos da natureza, o homem enquanto lobo do homem, a lei do mais forte, na verdade nada mais seja do que uma leitura capitalista da natureza. Gosto muito de uma autora, a bióloga Lynn Margulis, ela foi uma mulher brilhante que teve a coragem de enfrentar o status quo científico e questionar essa ideia, sua teoria era de que na natureza predominam relações de cooperação e não de competição entre as espécies, como costumamos imaginar. Ela dá para isso, entre outras, a imagem de uma árvore, aquilo que enxergamos como um “indivíduo” é na realidade um grande organismo formado por inúmeros organismos e microorganismos que cooperam entre si.

“A literatura salva, mesmo que esse não seja o seu sentido. Me salvou e continua a me salvar da prisão que pode ser uma vida. Parece que para viver a vida de forma mais plena é preciso tocar muitas vidas, conhecer para expandir nossa própria experiência.”

4.
Carola: A literatura salva? Eu sempre me faço essa pergunta, e sempre encontro respostas diferentes.

Itamar: A literatura salva, mesmo que esse não seja o seu sentido. Me salvou e continua a me salvar da prisão que pode ser uma vida. Parece que para viver a vida de forma mais plena é preciso tocar muitas vidas, conhecer para expandir nossa própria experiência. Nesse sentido a literatura me salvou inúmeras vezes. Não que a literatura tenha um objetivo. Não tem objetivo sistemático algum, nós que atribuímos significados ao seu escopo. E para você? A literatura salva? Ela tem um propósito definido?

Carola: Gosto muito dessa ideia: a literatura salva da prisão que pode ser uma vida. Respondendo à sua pergunta, sim, ela pode salvar. A literatura me salvou duas vezes. Na primeira, como leitora. Me salvou quando criança, eu fui uma criança muito melancólica, hoje diria que eu era uma criança deprimida. A literatura me mostrou outras possibilidades de mundo, outras formas de existir, mais guiadas pela imaginação, pela fantasia. Depois, já adulta, me salvou uma segunda vez, desta vez como escritora. A escrita me deu um lugar para onde voltar, um lugar que eu não tinha, e que eu vou construindo livro a livro. No meu caso, se não fosse a literatura, eu não estaria aqui. Quanto ao propósito, não, não acho que haja um propósito ou um sentido concreto, pra mim a literatura é uma espécie de caixa de ferramentas, dentro dela lentes que nos ajudam a enxergar o mundo, o que vamos fazer com elas, depende de cada um.

5.
Carola: Ao contrário da sociedade ocidental, para as culturas ameríndias (e não só elas), o tempo é circular. Penso na literatura como uma ferramenta capaz de apontar simultaneamente para o passado e o futuro, uma literatura capaz de reescrever o presente. Serão futuro e passado fios de uma trama que se tece simultaneamente?

Itamar: Gosto da imagem do futuro e do passado sendo tecidos simultaneamente. Os Evenkis, indígenas das tundras siberianas, compreendem a sua vida como uma linha. Quando questionados sobre sua origem, eles não conseguem nos dar uma resposta que corresponda à nossa lógica de lugar delimitado. Isso porque sua vida não ocorre em um lugar, mas em todos os lugares. “Todos os lugares” é a malha de trilhas interligadas ao longo das quais as pessoas vivem suas vidas. Somam-se às suas trilhas as trilhas dos que os antecederam e assim por diante. Quando imagino as trilhas de nossos antepassados, costumo pensar o mesmo: são suas trajetórias históricas que, por sua vez, são capazes de se inscrever não apenas no mundo social, mas também em traços que carregamos no nosso código genético. Não por acaso a molécula de DNA é formada por dois filamentos entrelaçados entre si como uma hélice. Nele encontraremos as marcas do nosso passado e algumas pistas do que podemos ser no futuro, que doenças ou problemas podemos desenvolver. É provável que daqui a algum tempo seja possível mapear as potencialidades que cada ser humano abriga. O exemplo do DNA é alegórico para imaginar futuro e passado como fios de uma trama tecida simultaneamente. E se ela é linear, não impede que esses pontos de linhas se encontrem formando um círculo.

Carola: É interessante pensar que o DNA funciona como uma linguagem, com sua sintaxe própria, às vezes trocamos uma letra e pronto, muda completamente o significado. Me lembrei agora da ideia de “no início era o verbo”, ou seja, a palavra. Quem sabe “no início era o verso”… De qualquer forma, é lindo isso, a ideia de um mundo criado através da palavra, um código genético que está em tudo, uma escrita do mundo.

6.
Carola: Suely Rolnik, em seu livro Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada, nos dá dez sugestões para descolonizar o inconsciente. Uma delas é “Não negociar o inegociável”. Eu gosto muito. Penso muito nessa frase. E sinto que “não negociar o inegociável” vale para a literatura também.

Itamar: “Não negociar o inegociável” me lembrou algumas perguntas que me fizeram ao longo do último ano sobre o desenlace de Torto arado: se havia alguma relação com a história de Bacurau, de Kleber Mendonça. Logo após o lançamento, eu entrei numa espiral de eventos e não consegui assistir de imediato ao filme. Meses depois, quando consegui ver, constatei de fato o significado desse questionamento. Por coincidência, li Sobre os ossos dos mortos, da Olga Tokarczuk, e assisti Parasita, do diretor Bong Joon-ho, num intervalo de tempo pequeno. São obras criadas no espaço de uma década, e que carregam o espírito dessa sentença da Suely Rolnik. Não haverá conciliação, não negociaremos o inegociável, se as coisas permanecerem como estão. A literatura reflete a experiência de quem a escreve. Talvez essa constatação seja o espírito do nosso tempo: não há conciliação possível para tamanho desequilíbrio e desigualdade.

Carola: É curioso, pensando na minha vida, quando jovem, muitas vezes “negociei o inegociável”, algo que hoje eu jamais faria. Sinto que à medida que envelheço, vou me tornando mais radical, não deveria ser ao contrário? (risos) 

Itamar: Acho que para muitas questões tentaremos encontrar o caminho do meio, do equilíbrio, da compreensão. Mas há outras que se tornam cada vez mais inegociáveis, inconciliáveis com o humanismo que vamos expandindo ao longo de nossas vidas. Talvez essa não conciliação pareça radical, mas no fundo são determinações que aprendemos a desenvolver. Quero acreditar, Carola, que se trata de um instinto de sobrevivência, não?

7.
Carola: Tenho lido muita poesia, cada vez mais. Como se a leitura do mundo só me fosse possível através do poema, uma sensação que começou com os acontecimentos políticos dos últimos anos no Brasil e se intensificou com a pandemia. Não tenho explicação lógica para isso. E lembrei agora de um poema de Edimilson de Almeida Pereira, que de alguma forma tem a ver com toda esta conversa:

Santo Antônio dos Crioulos

Há palavras reais.
Inútil escrever sem elas.
A poesia entre cãs e bichos
é também palavra.
Mas o texto captura é o rastro
de carros indo, sem os bois.
A poesia comparece
para nomear o mundo. 

Itamar: Edimilson é um dos meus poetas preferidos. Eu também tenho esse afeto pela poesia, sempre há livro de poesia na minha cabeceira. Por vezes empreendo estudos mais profundos, sem qualquer objetivo ou método sobre a poesia. É como contemplar uma árvore, sem pensar no conhecimento sistematizado que temos sobre ela. Um contemplar sentindo. Ela me ajuda a pensar minhas questões de forma mais subjetiva e menos simplista. O poema pode ser um grande tratado sobre o díptico consciente e inconsciente, talvez por isso essa atenção à poesia. Sua escolha me fez recordar uma entrevista de Anne Carson que foi parar num poema da Ana Martins Marques, “se a prosa é uma casa, a poesia é um homem em chamas correndo rapidamente através dela”. Tenho dito que escrever é voltar para casa. Talvez por minha experiência profissional e etnográfica aprendi a anotar, coletar informações e pensamentos, para depois escrever sobre eles. Escrever é um ato solitário. É preciso, literalmente, voltar para casa para dar sentido às percepções desordenadas que acumulamos. Já me perguntaram se viveria fora do Brasil. Confesso que neste atual estado de violência generalizada do governo contra tudo e todos é uma ideia que vez ou outra passa por minha cabeça. Se o fizesse seria por um instinto de sobrevivência, não por escolha deliberada. Acho que não conseguiria mais escrever porque sempre estaria no exílio à espera de “voltar para casa”. Penso em você, Carola, que vive em permanente deslocamento. Como voltar para casa e escrever? Como sua experiência literária é construída a partir desse permanente deslocamento?

Carola: Que linda a sua pergunta, me emocionou, talvez por tocar nisso que é um dos meus temas principais, o deslocamento. Você diz que escrever é voltar pra casa, mas no meu caso, não há “casa” para voltar. Não há origem, não há nada. No fundo minha escrita é a minha casa, uma casa feita de palavras, palavras que vieram antes de mim, palavras que virão depois. Como diz o poema “a poesia comparece/para nomear o mundo”.

Itamar: Que lindo, Carola. Acho que sua resposta fecha bem nosso diálogo.

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho