Voltei da Festa Literária de Guaratinguetá, em São Paulo, lendo uma seleta de contos do Fernando Molica. Os originais. A viagem de quase quatro horas até o Rio seria atravessada por canetadas no papel. Sublinhados, apontamentos. “Rabisque”, pediu o Molica. Ao que respondi com uma frase fisgada da lembrança de Dalton Trevisan: “Serei cruel”.
Era o que Dalton rogava aos amigos quando lhes enviava os textos recém-escritos. Otto Lara Resende, um desses confidentes, acabaria por adotar a máxima para lidar com a própria prole. “Costumo pedir aos meus filhos que me policiem. Sejam cruéis. Aà outro dia a Cristiana me advertiu: Pai, cuidado. Você está muito reminiscente”, conta ele em crônica de 1991. “Mas é isto mesmo. Depois de certa altura, a gente traz o cadáver do passado amarrado ao pé.”
Missivista contumaz, Otto dedicou boa parte de suas cartas a comentar textos alheios que haviam acabado de ganhar vida. Uma prática, aliás, comum a muitos escritores de outros tempos. Estão aà os livros de correspondências de Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Fernando Sabino e Hilda Hilst que não me deixam mentir. Citei apenas brasileiros quando poderia listar autores do mundo todo. O esquema “mostra o seu que eu mostro o meu” sempre rompeu fronteiras. É um costume universal.
No diálogo epistolar, há um farto escambo de elogios mas tambĂ©m espaço para a crĂtica franca e aberta. A pesquisadora Elvia Bezerra, que tem se dedicado a compilar a correspondĂŞncia de Otto para futuro livro, contou uma dessas histĂłrias em evento recentemente promovido pelo Instituto Moreira Salles (IMS).
Certa vez, em resposta a Rubem Braga, o escritor mineiro fez duros reparos ao tĂtulo da crĂ´nica que lhe fora submetida. No texto em questĂŁo, Rubem reclama da conjuntura nacional — o trânsito enrascado, o desconforto do povo —, antes de relatar a esticada a Paquetá. Quer “descansar de si mesmo” e lamenta-se por nĂŁo poder viajar ao exterior devido ao câmbio altĂssimo, restando-lhe o remĂ©dio de escrever cartas.
Mas carta, pondera, “nĂŁo Ă© remĂ©dio para curar nada, Ă© apenas aspirina que mal atenua a dor da saudade”. “Carta Ă© uma pastilha barbitĂşrica.” “BarbitĂşrica!”, exclama Rubem na sequĂŞncia, para concluir: “Duvido que alguĂ©m me mostre uma outra palavra mais feia na lĂngua portuguesa.”
O cronista passa, então, ao chiste puro e simples. “Sento-me para escrever uma carta a uma pessoa querida e de repente me aparece essa palavra, como uma pequenina mulher barbuda que sofre de ácido úrico, e com voz esganiçada, a fazer caretas, me diz: eu sou a barbitúrica, eu sou a barbitúrica!”. Seria melhor, assim, não comprar dólar, nem escrever carta alguma. E gastar o pouco dinheiro numa esticada à pacata ilha carioca. Foi o que fez.
Otto pondera que “Um passeio a Paquetá” nĂŁo Ă© tĂtulo apropriado para a crĂ´nica. Que “barbitĂşrica” Ă© uma palavra em tudo oposta a Paquetá, no que esse vocábulo traz de singeleza e lirismo. Mas Rubem firma o pĂ©. O texto termina sendo publicado com o nome original.
Digressiono ao reportar aqui esse episódio porque a crônica, afinal, é terreno de liberdade. Uma conversa fiada — e seus fios não têm a obrigação de emaranhar um assunto só. Mas me pego a pensar, juntando as rasuras nos contos do Molica e a interlocução postal entre Otto e Rubem, que esse esquema de trocas continua em vigor. No futuro, contudo, leitores curiosos e pesquisadores não terão material sobre o qual se debruçar.
É comum que, ao terminar um texto, eu o remeta a colegas escritores para uma apreciação menos viciada. E vice-versa. Papeamos, argumentamos, refletimos, sĂł que nossas hesitações, as possĂveis emendas, assim como as mensagens de parte a parte, tudo isso rapidamente se dissipa na rarefação da neblina digital. Desmancha no ar. Parafraseando o Otto, o hábito de escrevermos cartas tornou-se tambĂ©m um cadáver do passado. Agora nĂŁo amarrado, e sim enterrado sob os pĂ©s.Â