Morreu no Rio de Janeiro no final do mês passado, o escritor Carlos Sussekind. Nascido naquela mesma cidade no dia 17 de setembro de 1933, Sussekind publicou pouco: Os ombros altos (1960, disponível em edição da 7Letras); Armadilha para Lamartine (1975) e O que pensam vocês que ele fez (1994), ambos relançados pela Companhia das Letras; e O autor mente muito (com o psicanalista Francisco Daudt, 2001), além de um obra-prima da narrativa curta, O Anti-Natal de 1951 (publicado originalmente no “Caderno de Sábado”, do Jornal da Tarde, de São Paulo, em 24 de dezembro de 1994, e incorporado à coletânea Contos para um natal brasileiro, lançado pela Relume Dumará-Ibase, em 1995).
Neto do escritor Lúcio de Mendonça, e filho de um famoso jurista, também chamado Carlos Sussekind, o escritor utilizou-se de parte do diário do pai, que alcançava, segundo ele, mais de 30 mil páginas escritas, para montar algumas de suas narrativas. Foi assim com seu livro mais famoso, a obra-prima Armadilha para Lamartine, lançado pela editora Labor, em 1975, aliás, assinado como Carlos & Carlos Sussekind. Aqui vai uma pequena resenha sobre esse romance, como forma de homenagear o autor (a citação das páginas refere-se à primeira edição).
Um estranho — mas fascinante — romance, construído a partir de dois textos: os cadernos de nº 66 e 67 do diário do procurador Espártaco M., 56 anos, homem de esquerda e ateu, que cobre o período de outubro de 1954 a agosto de 1955 e que tem como ponto alto os dois meses (como vai consignado na p. 17, ou 45 dias, na p. 300) em que seu filho, Lamartine, 21 anos, permanece internado no Sanatório Três Cruzes para doentes psiquiátricos; e as duas “mensagens” que Lamartine escreve, fazendo-se passar pelo colega Ricardinho, que relata brevemente a vida intramuros.
Espártaco relata obsessivamente seu dia a dia, em cadernos intitulados “Diário da Varandola-Gabinete” (um cubículo de 1:15 por 1:60, “meus ‘sete palmos’, a única coisa que possuo verdadeiramente em minha casa” (p. 143). No diário, ele registra minúcias, como horários precisos em que saiu para trabalhar, almoçou ou jantou, os fatos políticos nacionais e internacionais, dados sobre a saúde dele, da mulher, Emília, dos filhos, Anita (recém-casada e em processo de engravidamento) e Lamartine, de parentes e conhecidos. “O escrever está na massa do meu sangue. Não saberia viver sem o fazer” (p. 138), afirma ele. São acontecimentos banais de uma família de classe média que mora no Leme, na então capital da República, vivendo a tensão dos últimos dias do governo Café Filho, passando por dificuldades financeiras e por aborrecimentos normais, numa “‘rotina’ que os meus filhos odeiam tanto e que eu reputo a coisa mais perfeita e mais deliciosa da vida” (p. 112).
Somente a descoberta da esquizofrenia, “rótulo posto na perturbação mental por que está passando o Lamartine” (p. 258), abala aquele equilíbrio precário. O que está em discussão, no fundo, não é apenas a crítica ao processo de tratamento a que Lamartine é submetido — eletrochoques, confinamento, etc. —, mas principalmente a tentativa de domesticação daqueles que não se encaixam dentro da ordem estabelecida. A armadilha a qual se refere o título é o “aparelho que intimida” (p. 29), o Estado que força os cidadãos para que se tornem pacatos e submissos.
O próprio questionamento do que é normal e o que não é está presente no livro, às vezes de forma sutil, às vezes de forma explícita, como quando Espártaco anota que um funcionário do Sanatório olha-o como se ele fosse “um dos doidos” (p. 298), trecho que apaga em seguida. Sem dúvida, um dos maiores romances da literatura brasileira.