Não sei você, leitor (a), mas eu gosto muito de caminhar. Não, não sou daquele tipo que se paramenta — boné, camiseta, chorte, óculos escuros, tênis e smartphone, tudo caríssimo — para parecer um atleta descolado. Gosto de caminhar devagar, por quilômetros a fio, sem rumo e sem objetivo, apenas pelo prazer de ver e escutar a paisagem da minha cidade. Antes da pandemia, costumava sair de casa a pé, sábado de manhã, e ir até a praça da Sé, no centro, e lá ficava perambulando, extasiado com aqueles prédios do começo do século 20, que ainda não foram alcançados pela estupidez dos nossos empreendedores imobiliários. Mas não é sobre isso que quero falar hoje!
Tenho seguido rigorosamente o isolamento social. Há mais de ano não recebo ninguém em casa, não me encontro com ninguém na rua, e só me desloco de dez em dez dias para comprar frutas, legumes e verduras. E, nesses passeios forçados, venho notando, passo a passo, a quantidade de estabelecimentos comerciais que vão sendo fechados na minha rua — não provisoriamente, para cumprir protocolos sanitários, mas em definitivo.
Minha rua tem exatos 2,6 quilômetros e pode ser percorrida a pé em 37 minutos (ela sobe de 748 metros a 819 metros de altura, em duas ladeiras contínuas) e é essencialmente residencial, com algum comércio local. Começa numa avenida chamada Francisco Matarazzo, que evoca o poderio industrial de uma elite aristocrática que o tempo se encarregou de enterrar, e termina na avenida Doutor Arnaldo, que aloja o maior complexo hospitalar da América Latina e também, por conseguinte, o maior complexo de cemitérios, sete no total: Araçá, Santíssimo Sacramento, Irmandade de São Paulo, Redentor, Consolação, São Paulo e da Paz.
Minha rua é meu universo. Aqui é onde se encontram minha pizzaria, minha farmácia, minha casa lotérica, meu ponto de táxi, minha agência bancária, meu supermercado, meu barbeiro, minha dentista, minha costureira e a loja onde compro ração e areia para agora meu único gato, Nikolai. E onde se encontram o Consulado de Cuba — ah, sim, os comunistas de lá já possuem uma vacina própria, a Soberana — e uma das poucas livrarias de rua que ainda resistem na cidade, a Zaccara.
Portanto, leitor (a), você vai entender minha tristeza e minha angústia: esse meu universo está desabando. Outro dia, listei os pontos comerciais que exibem placa de aluga-se ou vende-se, apenas na minha rua. Caminhe comigo: 1 floricultura, 2 lojas de produtos para casa, 1 magazine, 1 lotérica, 5 restaurantes, 1 ótica, 1 estacionamento, 2 papelarias, 2 lavanderias, 3 agências bancárias, 1 café, 2 salões de beleza, 1 padaria, 1 posto de gasolina, 1 loja de calçados e 1 escola. Não é um levantamento científico, claro, é uma observação empírica, mas a impressão é de que, de cada dois pontos comerciais, um fechou de vez…
No Brasil inteiro, segundo levantamento da Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 75 mil estabelecimentos comerciais fecharam as portas em 2020, sendo 98,8% deles micro e pequenas empresas. São empregos que se perdem, famílias que passam dificuldades, pessoas que se desesperam. Como não temos dirigentes, infelizmente, a tendência é essa crise econômica sem precedentes desaguar numa crise social sem precedentes. E, com ela, todos perderemos — menos, claro, aqueles 1% que detêm 28,3% do total da renda do país.
Luz na escuridão
Susana Fuentes, contista, romancista, poeta, tradutora, dramaturga: “Acaba de sair pela 7Letras um livro de poesia, A gaivota ou A vida em torno do lago: tema para uma peça curta. Com Tchékhov, olho para nós mesmos nesses tempos de agora, tento andar sobre ruínas e escrever a memória. Ao mesmo tempo, nos cuidados no cotidiano, os detalhes, a natureza, as vozes dos bichos, o olhar que aprendi com o gato. E a gaivota, fazer a pergunta, quantas vezes morre a gaivota? E que vidas se ouvem agora e chegam até nós? As margens do lago em chamas. Como mergulhar num lago em chamas? Um dia, um homem por falta do que fazer mata a gaivota, tema para uma pequena peça — tema para o que perdemos, e tão frágil e forte é ferido a cada dia. A gaivota, ela se recusa a morrer. Uma carta que segue, chega até nós, pedaços, memórias. O voo da gaivota que começa nos pés, o olhar do gato. O salto. Uma peça-poema, sem final, essa carta. A Heloisa Buarque de Hollanda escreveu para a orelha do livro, alegria imensa”. O livro pode ser adquirido aqui.
Parachoque de caminhão
“Como é triste chegar a qualquer lugar para sempre! É por isso que a morte nos assusta.”
Teresa de la Parra (1895-1936)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Machado de Assis
(Rio de Janeiro, RJ, 1839-1908)
Uma criatura
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
(Ocidentais, 1901)