Estou em uma festa na casa de Hilda Leporace, a esposa de um deputado da oposição. Ela me convidou por gentileza, em agradecimento à orelha que escrevi para seu novo livro de poemas, “Impulsividade”. Vim, eu também, só por impulso. Não conheço ninguém. Nada tenho a fazer aqui. Vim porque ando solitário e a vida de cronista é vazia.
Conto os minutos para me despedir, quando um senhor narigudo, de cavanhaque vermelho, me aborda. “Permita-me aborrecĂŞ-lo. Mas nĂŁo acha tudo isso um absurdo?” Olho Ă nossa volta, tudo me parece banal e, mais ainda, entediante. Nada mais previsĂvel, alĂ©m de estĂşpido, do que uma festa literária.
Como nada consigo dizer, o velho continua: “Veja só! Nosso pequeno planeta despenca no cosmos, mil estrelas giram desgovernadas sobre nós. O universo se desenrola como um tapete demente. O planeta está prestes a explodir. Enquanto isso, essa gente ri e bebe”.
Apresento-me. Pergunto se é astrônomo, ou filósofo. “Deus me livre”, reage. “Sou ator.” Talvez me use como plateia. Pode ser uma improvisação, um experimento cênico, caso em que eu desempenho o papel involuntário de cobaia. “O senhor devia beber e relaxar”, pondero. Engasga. Seu rosto fica ainda mais vermelho que o cavanhaque. Irá explodir? Irá despencar?
Para acalmá-lo, e em má hora, pondero que Ă© tudo mesmo insensato, que a vida Ă© difĂcil para todos e, por isso, nos refugiamos no mundo da lua. “A vida Ă© uma piada, mas nada podemos fazer a respeito”, argumento. Entusiasma-se. Agora que o engasgo passou, me convida para uma caminhada pelo jardim. Sobre nĂłs, um cĂ©u carregado de estrelas. Um fio invisĂvel as sustenta.
“Pois me entenda. Continue a olhar para o cĂ©u e entenda”, o velho insiste. “Pense no seu dia. Sim, o dia de hoje. Mais um dia sem importância, que termina em uma festa ridĂcula.” NĂŁo deixa de ter razĂŁo. Antes de encontrá-lo, eu já sentia o lodo em que pisávamos. Percebia os automatismos, os rituais, as reverĂŞncias, as manias que cultivamos sem pensar e que, no entanto, nos tornam homens decentes. NĂŁo decentes, mas ignĂłbeis. “O senhor nĂŁo percebe que encenamos um teatro?” — ele insiste. “Que tudo isso Ă© para esquecer o grande desastre?”
Uma garçonete nos oferece uĂsque. Odeio uĂsque, mesmo assim aceito uma segunda dose. Eis o teatro. A moça tenta ser gentil e pergunta: “Os senhores estĂŁo felizes?”. Sinto vontade de fugir. Aquele sujeito que está na casa da senhora Leporace e que conversa com um velho ator nĂŁo sou eu. Eu nĂŁo sou isso.
Peço licença e vou ao banheiro. Dou duas voltas na chave. Agora percebo que suo. Sento-me na borda da banheira. Olho em volta. Por que diabos o velho surgiu para me despertar? Preferia o sono tolo dos crentes. A anestesia da normalidade. Em vez disso, não posso mais esquecer das estrelas que despencam sobre nós. Não estou em um banheiro, mas em um abismo.
Ao abrir a porta, vejo de longe o velho e me desvio. Escondo-me. Quero fugir, mas, para isso, preciso atravessar o salĂŁo e a senhora Leporace, ainda emocionada com minhas palavras vazias, me deterá. Estou preso. AtĂ© que avisto a garçonete dos uĂsques. Ela me encara e esboça um sorriso.
“O senhor está bem?” — pergunta. “Não, não estou bem”, admito. Pego minha terceira dose e dou um gole longo. A moça sugere que nos refugiemos um pouco na cozinha. “Lá há menos gente e o senhor vai respirar melhor.”
Diante da pia, uma mulher gorda lava pratos. Enquanto lava, admira o céu através de uma janela de serviço. Ignora-me. Vira-se, enfim, para a garçonete e comenta: “Nunca vi um céu tão estrelado. Parece que as estrelas se multiplicaram”. É verdade que estamos em Itaipava. Na montanha, o céu sempre parece mais próximo. Mas não tão próximo.
“Há algo errado no céu”, diz, preocupada, a velha gorda. O assombro a leva a deixar um prato cair. Enquanto se abaixa para catar os cacos, continua: “Alguma coisa está acontecendo”. Parece que as preocupações do ator contaminaram a todos, até os serviçais. Também a cozinha se assemelha a um calabouço.
Realmente nĂŁo estou bem, pois agora as coisas começam a girar. Acomodo-me em um banquinho, peço um copo d’água e fecho os olhos. NĂŁo adianta: mesmo de olhos fechados, luzes espocam diante de mim. A gorda cochicha para a garçonete: “VocĂŞ está vendo? TambĂ©m o senhor está percebendo”. A moça insiste que Ă© bobagem, que Ă© sĂł o uĂsque. “A vida está debochando de nĂłs”, filosofa.
Pergunto, então, se ela conhece o ator de cavanhaque vermelho. “Ah, o senhor Rodrigues? Ele apenas finge que é ator”. Ele finge? Apenas interpreta? “Finge para assustar os outros, ou para debochar. Na verdade, ele é astrônomo”. As palavras da garçonete provocam um curto em minha mente. Será que, apesar de tudo, devo acreditar em sua teoria das estrelas?
O mundo perde a estabilidade. Preciso ir embora. Lembro-me então de um lindo conto escrito por uma aluna em que imensas pedras caem do céu. Esforço-me, mas o nome da aluna brilhante me escapa. Lembro que seu relato me impressionou muito. Agora me sinto dentro de seu conto. Só que aqui, em vez de pedras, estrelas cairão. É tudo ainda mais grave.
Recordo, então, que, no curso ginasial, um professor de literatura — chamado Rodrigues também, José Rodrigues, um grande professor — me aconselhou, por precaução, a me afastar da literatura. “Você é muito impressionável. Acreditará em todos os relatos que ler e sofrerá muito com isso. Melhor evitar os livros.”
Sugeriu que eu cursasse uma carreira técnica, a engenharia ou, quem sabe, a indústria, porque nelas eu ficaria menos exposto às fantasias. “Você já carrega ilusões demais”, me disse. “Caso se aproxime da literatura, cairá doente.” Vem-me, agora, a vontade de procurá-lo para rememorar os detalhes dessa conversa. Infelizmente, ele já faleceu.
Decido dar um fim a essas fantasias e chamo um táxi. Ainda tento recordar o nome da aluna que escreveu o conto sobre as pedras que caem na Terra, quando o motorista comenta: “O senhor notou que hoje as estrelas estão mais próximas?”. Só agora eu o encaro pelo espelho do retrovisor. A barba vermelha parece mais murcha, mas é ele. Desmaio.