🔓 Maria Esther Maciel

Ensaio fotográfico de Maria Esther Maciel
Foto: Ozias Filho
01/12/2022

Um bicho-de-sete-cabeças é um animal que vive geralmente no espaço urbano, e que se comporta de forma estranha face às várias situações que se lhe apresentam. A sua lógica quase sempre é confusa, complicada, dorida, e percebe o seu entorno como algo de difícil resolução, já que os caminhos, de tão múltiplos, os deixam presos ao solo. O desnorte é o seu alimento.

Animal que povoa todos os continentes, diferencia-se uns dos outros pela língua que assume em cada país onde vive, mas na sua essência nasce e morre igual aos outros, debaixo do mesmo sol, na cama de terra comum a todos. Anda por este planeta há milhares de anos. Contudo, e apesar da sua evolução ao longo dos séculos, este ser vivo já se esqueceu de ver a simplicidade à frente dos olhos. É um ser imaginário da nossa mitologia, omnipresente. Responde também pelo nome científico de homo sapiens. Um e outro, são o mesmo animal, e sofrem da metamorfose, segundo o estado de espírito do momento em que se encontram.

Quando contemplo, através da leitura, o sublime livro da escritora Maria Esther Maciel, denominado Pequena enciclopédia de seres comuns, dou-me conta do quão impossível é não ver a face exposta do ser humano, e a complexidade intrínseca da sua existência. O livro, que reúne seres reais e imaginários, entra-me pelos sentimentos por uma porta com um quê de acadêmico e de poesia. Os verbetes deste breviário, compostos por marias, joões, viúvas, viuvinhas, e seres híbridos, ilustrado por Julia Panadés, são uma viagem a um mundo, que julgamos secreto, pois que desaprendemos a ver, escutar, cheirar, tocar, já que dia após dia estamos mais distantes da natureza, e de nós mesmos.

Não temos a capacidade de confirmar, por exemplo, que João-Baiano, ave ágil, usa seus talentos acrobáticos na captura de insetos. Ou que a Maria-Sem-Vergonha, também conhecida por beijinho, é uma planta com muito jogo de cintura, pois se adapta em qualquer tipo de terreno; mas que mesmo assim é considerada uma erva daninha. Já a Viuvinha-Soldadinho, parente da cigarra, está pronta para ir à guerra, o seu dorso lembra um capacete de soldado. Alimenta-se da seiva das árvores, e como não é egoísta, as sobras da sua refeição vão parar às bocas das formigas… Por aqui desfilam peixes, borboletas, pássaros, plantas, insetos, sempre com a marca indelével da leveza.

A grande magia desta pequena enciclopédia, e da sua autora, é o de nos transportar por breves instantes ao calendário da infância. Assim me senti nas suas páginas. Um tempo no qual as sete cabeças do bicho-criança estavam mais preocupadas em brincar, sem que o amanhã importasse para qualquer coisa.

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho
Maria Esther Maciel
Poeta, ensaísta, ficcionista e professora de literatura da UFMG e da Unicamp, nasceu em Patos de Minas (MG) e vive em Belo Horizonte. Publicou vários livros em diferentes gêneros literários, como Triz (poesia, 1998), A memória das coisas (ensaios, 2004), O livro de Zenóbia (prosa/poesia, 2004), O livro dos nomes (ficção, 2008), A vida ao redor (crônicas, 2014), Literatura e animalidade (ensaio, 2016), e Longe, aqui. Poesia incompleta (1998-2019). Lançou, em 2021, Pequena enciclopédia de seres comuns, pela Todavia. Dirige a revista Olympio – literatura e arte.
Ozias Filho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1962. É poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do dilúvio, Páginas despidas, O relógio avariado de Deus, Insulares, Os cavalos adoram maçãs e Insanos, estes dois últimos, em 2023). Como fotógrafo tem vários livros publicados e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017. Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil, Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991.

Rascunho