Um bicho-de-sete-cabeças Ă© um animal que vive geralmente no espaço urbano, e que se comporta de forma estranha face Ă s várias situações que se lhe apresentam. A sua lĂłgica quase sempre Ă© confusa, complicada, dorida, e percebe o seu entorno como algo de difĂcil resolução, já que os caminhos, de tĂŁo mĂşltiplos, os deixam presos ao solo. O desnorte Ă© o seu alimento.
Animal que povoa todos os continentes, diferencia-se uns dos outros pela lĂngua que assume em cada paĂs onde vive, mas na sua essĂŞncia nasce e morre igual aos outros, debaixo do mesmo sol, na cama de terra comum a todos. Anda por este planeta há milhares de anos. Contudo, e apesar da sua evolução ao longo dos sĂ©culos, este ser vivo já se esqueceu de ver a simplicidade Ă frente dos olhos. É um ser imaginário da nossa mitologia, omnipresente. Responde tambĂ©m pelo nome cientĂfico de homo sapiens. Um e outro, sĂŁo o mesmo animal, e sofrem da metamorfose, segundo o estado de espĂrito do momento em que se encontram.
Quando contemplo, atravĂ©s da leitura, o sublime livro da escritora Maria Esther Maciel, denominado Pequena enciclopĂ©dia de seres comuns, dou-me conta do quĂŁo impossĂvel Ă© nĂŁo ver a face exposta do ser humano, e a complexidade intrĂnseca da sua existĂŞncia. O livro, que reĂşne seres reais e imaginários, entra-me pelos sentimentos por uma porta com um quĂŞ de acadĂŞmico e de poesia. Os verbetes deste breviário, compostos por marias, joões, viĂşvas, viuvinhas, e seres hĂbridos, ilustrado por Julia PanadĂ©s, sĂŁo uma viagem a um mundo, que julgamos secreto, pois que desaprendemos a ver, escutar, cheirar, tocar, já que dia apĂłs dia estamos mais distantes da natureza, e de nĂłs mesmos.
NĂŁo temos a capacidade de confirmar, por exemplo, que JoĂŁo-Baiano, ave ágil, usa seus talentos acrobáticos na captura de insetos. Ou que a Maria-Sem-Vergonha, tambĂ©m conhecida por beijinho, Ă© uma planta com muito jogo de cintura, pois se adapta em qualquer tipo de terreno; mas que mesmo assim Ă© considerada uma erva daninha. Já a Viuvinha-Soldadinho, parente da cigarra, está pronta para ir Ă guerra, o seu dorso lembra um capacete de soldado. Alimenta-se da seiva das árvores, e como nĂŁo Ă© egoĂsta, as sobras da sua refeição vĂŁo parar Ă s bocas das formigas… Por aqui desfilam peixes, borboletas, pássaros, plantas, insetos, sempre com a marca indelĂ©vel da leveza.
A grande magia desta pequena enciclopédia, e da sua autora, é o de nos transportar por breves instantes ao calendário da infância. Assim me senti nas suas páginas. Um tempo no qual as sete cabeças do bicho-criança estavam mais preocupadas em brincar, sem que o amanhã importasse para qualquer coisa.

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