Os mais importantes e referenciais textos de filosofia ou de ciĂŞncia polĂtica, ou ainda, de histĂłria ou biografias de grandes nomes que lideraram emancipações sociais ao longo dos sĂ©culos, deixam muito evidente que os processos de conquista de direitos humanos e equidade social e econĂ´mica sĂŁo e sempre serĂŁo uma conquista, nunca uma dádiva.
Esta premissa forjou muitas frases e ditados populares que adequaram a ideia de conquista social emancipadora a todo e qualquer direito ou licença para que o indivĂduo tenha a liberdade para agir conforme sua vontade ou desejo. Aos indivĂduos, seja na famĂlia ou no trabalho, se exige uma performance de conquistas que possibilitam, e justificam, o eventual ĂŞxito na dura competição da vida moderna e contemporânea que valoriza muito mais o ter do que o ser.
Se podemos questionar as derivações da ideia central de conquista na polĂtica para a vida privada das pessoas, nĂŁo há o que questionar sobre sua aplicação quando se trata da formulação de polĂticas pĂşblicas. Ou buscamos com luta e resiliĂŞncia infinita uma sociedade mais justa, mais equânime, mais fraterna, mais solidária e empática entre os seres humanos e a natureza, ou o resultado será a barbárie destrutiva da ainda precária civilidade de nossas sociedades, fazendo-nos regressar a estágios civilizatĂłrios inimagináveis.
NĂŁo Ă© fácil, nunca foi fácil, construir uma consciĂŞncia nacional de que a participação efetiva da sociedade que constitui um territĂłrio e uma nação Ă© o grande veĂculo de conquista de que dispomos para avançar ou recuar. No Brasil, a alienação da maioria do seu povo em participar da polĂtica Ă© algo crĂ´nico, forjado pela nossa histĂłria elitista e excludente, onde o exercĂcio da polĂtica majoritária sĂł pode ser exercido pelos famigerados “homens de bem”.
Essa abjeção atribuĂda Ă atividade polĂtica está tĂŁo profundamente enraizada que a encontramos em todas as áreas de atuação da sociedade civil e em todas as estratificações sociais. Ditos populares a confundem com paixões e emoções individuais, desqualificando sua circulação nas conversas entre pares e familiares. Quem nunca ouviu, ou proferiu, a manjada frase: “Futebol, religiĂŁo e polĂtica nĂŁo se discutem”. Ou seja, a nossa organização social enquanto cidadĂŁos de uma sonhada polis democrática ainda carece, e muito, da conscientização de mentalidades de milhões de compatriotas que, submissos Ă s ideologias autoritárias, a lĂderes populistas salvadores da pátria de toda ordem, se sentem incapazes de empunhar e conquistar sua prĂłpria histĂłria utilizando o inevitável instrumento da polĂtica, sabiamente criminalizado por diferentes segmentos de nossa elite econĂ´mica, social e intelectual.
Nesse momento em que escrevo, há poucas horas do horrendo espetáculo de destruição das sedes dos trĂŞs poderes da repĂşblica em BrasĂlia por uma horda enfurecida, movimento proporcionado pelos lĂderes da extrema direita brasileira, reflito sobre o quanto nos falta em consciĂŞncia polĂtica e o quanto Ă© angustiante, para nossa vergonha cĂvica, o xingamento destinado aos que se submetem ao fascĂnio verde amarelo: gado!
Ouvi, concordando, o ministro da Justiça em entrevista coletiva proferir a frase: “As palavras tĂŞm poder!”. Referia-se Ă necessidade de as autoridades pĂşblicas buscarem pela força da lei todos os que incitaram, formularam e organizaram os atos de terror, cultivados nos Ăşltimos quatro anos. Se a premissa Ă© justa e necessária frente aos acontecimentos, ela Ă© tambĂ©m mais um fator de reflexĂŁo que deveria orientar com profundidade nĂŁo apenas os atos de justiça e punição, mas tambĂ©m, e principalmente, os atos de formação da cidadania e da consciĂŞncia polĂtica que precisamos urgentemente implantar e fomentar no paĂs.
Os atos em defesa da democracia posteriores Ă barbárie de 8 de janeiro clamaram: “Sem anistia”. A referĂŞncia, a meu ver muito mais dirigida Ă crĂtica da eterna conciliação polĂtica realizada ao longo da nossa histĂłria pelas elites, do que Ă Ăşltima anistia que colocou no mesmo nĂvel aqueles que lutaram contra a ditadura militar e os que assassinaram e torturaram enquanto agentes pĂşblicos representantes do Estado, Ă© uma boa senha para que o atual governo de reconstrução saiba avançar politicamente e fazer o que Ă© preciso fazer.
A pergunta civilizatĂłria que todos esses fatos da nossa conjuntura, no inĂcio de um governo progressista, enunciam Ă©: como vamos superar os hábitos que anulam, ciclicamente, as conquistas que obtivemos?
É evidente que um conjunto de medidas, diversas e plurais, Ă© necessário para estancar a crise imediata das tentativas de assaltos antidemocráticos ao poder. Mas espero que se fomentem programas e ações de mĂ©dio e longo prazo que procurem emancipar a participação da cidadania na polĂtica democrática.
Aprofundar o engajamento polĂtico dos brasileiros Ă© algo que já foi captado pelo nosso maior Ăcone polĂtico na atualidade, o presidente Lula, que repetidamente chama a participação social, principalmente para criticar construtivamente o seu prĂłprio governo. O presidente sabe o que fala, a formação polĂtica e a necessidade da polĂtica sĂŁo expressões de sua prĂłpria trajetĂłria que o tornou uma liderança mundial. Ele a conquistou pessoal e coletivamente, no movimento que elevou parcela dos trabalhadores dos sindicatos aos partidos polĂticos e ao poder polĂtico há pouco mais de 40 anos, irrisĂłrio tempo histĂłrico que demonstra a frágil institucionalidade de nossas liberdades democráticas.
Caberá a este governo, que está enfrentando uma onda local e internacional de movimentos neofascistas, valorizar e priorizar em suas ações todos os instrumentos que tiver ao seu alcance para elevar a consciĂŞncia polĂtica de seus cidadĂŁos. Se a conquista humanamente mais urgente e tocante Ă© comida, abrigo, saĂşde e trabalho para todos, a conquista da verdadeira cidadania, proporcionada pela participação polĂtica democrática, Ă© fator preponderante para se garantir um futuro em que nĂŁo tenhamos mais conterrâneos com fome, desabrigados, doentes e desempregados.
Em outras palavras, a cidadania brasileira precisa conquistar o seu espaço de equidade e de justiça social porque este nĂŁo lhe será dado. E para que isso aconteça a longo prazo, porque a histĂłria se constrĂłi e igualmente nĂŁo Ă© dádiva, Ă© fundamental que programas e ações emancipatĂłrias e formadoras aconteçam, em proporção e intensidade inĂ©ditas, no governo da reconstrução. Me refiro especialmente Ă s polĂticas de educação e cultura, associadas Ă s polĂticas de comunicação inclusiva e de acesso universal Ă internet.
Talvez os horrores a que assistimos em 8 de janeiro tenham escancarado ainda mais o urgente atendimento ao tema da campanha de Lula: “Mais livros e menos armas”. Definitivamente este Ă© o caminho porque livros significam conhecimento de si, dos outros, da natureza, do mundo e armas significam a destruição de si, dos outros, da natureza e do mundo. Cada peça de arte destruĂda nos palácios da RepĂşblica, cada depredação dos mĂłveis e equipamentos, foram gritos tambĂ©m de ajuda, nĂŁo a indivĂduos, mas ao Brasil que ainda ostenta 88% de sua população com algum grau de analfabetismo funcional (cf. o Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional – 2018).
O bárbaro ataque aos trĂŞs poderes constitucionais expressa o quanto nosso povo pode vir a ser manipulado por ideologias autoritárias, violentas e fascistas. Nessa perspectiva, nĂŁo basta punir os mandantes. Se Ă© certo que há fascistas convictos por ideologia ou conveniĂŞncia e que precisam ser reprimidos, igualmente Ă© certo que quem os acompanha cegamente age por outros fatores. Tenho cá comigo que dentre esses fatores, um dos pilares Ă© a ignorância, entendida como a ausĂŞncia de conhecimento, nĂŁo apenas o acadĂŞmico e cientĂfico, mas todo conhecimento que vem das ascentralidades e das relações empáticas entre os seres humanos e a natureza.
A conquista da democracia brasileira depende da educação e da cultura, estratĂ©gias fundamentais de liberdade, e sua viabilização Ă© polĂtica.