Depois de tratar, por mais de dois anos, dos aspectos mais relevantes da criação literária, hoje começo nova coluna, com o tĂtulo visĂvel acima: O cânone na mochila. Nada mais transitĂłrio do que uma mochila; nada mais permanente do que o cânone. Desse contraste poderĂŁo surgir algumas ideias que talvez possam ajudar a compreender, num contexto atual, essas obras importantes que assombram o leitor, Ă s vezes afastam-no, e, quase sempre, geram intensa culpa por nĂŁo as terem lido.
Dada a plurivalĂŞncia semântica do vocábulo “cânone” e mais, sua intensa variedade classificatĂłria [por Ă©pocas, estilos, localização geográfica e cultural, etc.], prefiro tratar de obras que detĂŞm, há algum tempo, o reconhecimento generalizado dos leitores, crĂticos e teĂłricos, e que, ao mesmo tempo, coincidam com minhas preferĂŞncias. NĂŁo se trata de um “cânone pessoal”, porque meu gosto nĂŁo deve ser parâmetro para ninguĂ©m; por tudo isso, minhas escolhas e respectivas reflexões serĂŁo sempre contestáveis num ou noutro aspecto; aliás, mais contestadas do que aceitas, paciĂŞncia. Mas para encerrar o parágrafo: nĂŁo repetirei essas ressalvas a cada coluna, para nĂŁo chatear nossos leitores.
Assim, começo por Flaubert e sua obra maior.
1.
A quem observa o planejamento de Madame Bovary, elaborado pela mão de Flaubert — sim, foi uma obra detalhada e longamente planejada —, nota que seu autor tinha dúvidas. Prevê cenas, corta-as, faz emendas laterais, retoca palavras, inclui interpolações, e todo esse esforço evidencia dois fatos: em primeiro lugar, o ficcionista exigente que era e, em segundo lugar, o intelectual que tinha plena consciência da importância de sua futura obra. Quanto ao estilo, procurava naturalidade, seguindo o conselho de seu mentor literário, Louis Bouilhet, dado que, tanto ele, como Bouilhet, consideravam o tema como “prosaico” — leia-se, aà “naturalista”, e sulfuroso: o adultério feminino, e pior, baseado num fato conhecido por todos.
2.
AĂ reside a grande audácia desse livro: contar de maneira “prosaica” um acontecimento capaz de estremecer os leitores; com esse procedimento, digamos, estilĂstico, ele pretendia “naturalizar” o adultĂ©rio, dando-lhe uma roupa de algo possĂvel de acontecer por debaixo das tantas camadas moralistas de que se revestiu a sociedade francesa apĂłs a Restauração dos Bourbons. O resultado era previsĂvel: essa sociedade, sentindo ali representada suas entranhas, levou o autor ao tribunal, mas depois teve o bom gosto de absolvĂŞ-lo, e essa lambança sĂł serviu de promoção Ă obra.
3.
Mas então, é um adultério, perpetrado por uma jovem mulher que vivia cercada de tolos, estando, ela própria, imersa nas bobagens das novelas água-com-açúcar que lia. Flaubert — tal como Eça, no seu tempo — detestava, e com válidas razões, a geração anterior, romântica [e, com isso, acabou criando um modo de entender a literatura narrativa]. Tolo era o tedioso Charles, o marido médico, incapaz, até, de ser competente na medicina; tolos foram seus dois amantes, tolos eram seus interlocutores, tolo era o vigário. A cidadezinha, ela mesma, vivia numa tolice pertinaz, pequena, vil, obtusa.
4.
O equĂvoco de Emma foi imaginar que poderia, apenas com a ilusĂŁo, modificar, e apenas para si mesma, esse quadro mormacento. Sua fantasia era acreditar que o amor resolveria tudo, esquecendo-se que nem ela o sentia de fato. NĂŁo há, em todo o livro, nenhum momento em que percebamos, nela, alguma fatia de intenção amorosa, alguma faĂsca de desejo erĂłtico. Enfim, tal como Flaubert a criou, era uma mulher insensĂvel aos desejos carnais. Seu corpo lhe era um estranho. Por mais que, em certos momentos, pensasse em amor, usava gastas fĂłrmulas literárias. Assim, para que possamos desfrutar dessa grande obra, Ă© preciso entendĂŞ-la em seu tempo e a partir do olhar de Flaubert, porque Emma sofre do mesmo mal que Machado de Assis, em crĂtica cĂ©lebre, atribuiu Ă LuĂsa, de O primo BasĂlio: sem ser uma “pessoa moral”, era um tĂtere a servir Ă s intenções do autor.
5.
O caminho escolhido por Emma, esmagada pelas dĂvidas impagáveis e nem sequer sonhadas por seu marido, foi, como se sabe, o suicĂdio, e aĂ vemos um destino que ela comparte com Werther, com a grande diferença que o jovem romântico se matou por um amor nĂŁo correspondido; para ele, o ato extremo constituiu-se na libertação da vida e das penas desse amor. Para Emma, tambĂ©m foi libertação, mas aĂ o amor nĂŁo entrava em conta. AtĂ© a morte de LuĂsa teve um sentido, melhor do que o de Emma, pois LuĂsa morreu de remorsos.Â
6.
As camadas de defesa construĂdas por Flaubert para blindar Emma, quando retiradas, nĂŁo revelam nada. Nosso autor teria dificuldade em atribuir Ă sua heroĂna uma identidade prĂłpria, uma humanidade veraz, pois isso o colocaria frente ao perigo de reconhecer que as mulheres possuĂam autonomia afetiva, capazes de assumir sua sexualidade. Quer dizer, bem simplesmente: quem queria blindar-se era Flaubert que, entretanto, nĂŁo o conseguiu, e quase foi para detrás das grades.
7.
Claro que Madame Bovary não é uma obra perfeita no ponto de vista das emoções e, até, da estrutura: Flaubert atribuiu uma filha a Emma, a criança Berthe, e depois se viu numa camisa de onze varas no trabalho de conferir uma função dramática à menina. Seu final, no romance, é apressado, dando a impressão de um patético improviso. Perdoemos Flaubert, contudo: os escritores nunca sabem o que fazer com os filhos de suas personagens e, por isso, em grande parte, elas são solteiras e, se casadas, não têm filhos; se os tiverem, são sempre problemáticos.
8.
Mas entĂŁo por que lemos Madame Bovary e, ao fim de uma leitura, queremos ler de novo? E a cada tanto, voltamos a ela? A resposta mais simples, e, ainda assim, verdadeira: Madame Bovary Ă© uma estupenda obra de arte, uma das maiores já produzidas pela literatura do Ocidente. ImpossĂvel resistir ao fascĂnio das descrições, do andamento das cenas, do modo como Flaubert nos coloca dentro do enredo, como se dele participássemos. ImpossĂvel nĂŁo se seduzir pela fluĂŞncia e pelo ritmo das frases em que nada sobra, nada falha, e boas traduções conseguem dar uma ideia de como ressoa o texto original. Mesmo que vocĂŞ nĂŁo entenda um ovo de francĂŞs — nosso ensino perdeu gravemente excluindo-o da grade escolar — procure ouvir de olhos fechados nalguns dos tantos audiobooks na internet. Deixe-se acalmar por sua insuperável musicalidade. Flaubert lia e repetia em voz alta Madame Bovary, a ponto de dizer que quando o livro saĂsse, seus vizinhos já o conheciam de cor. O grande autor deu nobreza Ă palavra em prosa, numa Ă©poca em que todos achavam que tal dignidade existia apenas na palavra poĂ©tica.
9.
Mas não “apenas” por isso é que lemos Madame Bovary. Lemos porque Flaubert nos convence, usando sua arte e sua técnica, de que tudo ali é verdadeiro. Lançamos um olhar de intensa solidariedade a essa mulher perdida em seu dédalo de dores que, à falta de outra explicação, ela pensava ser a impossibilidade de pagar suas contas. Nunca se viu, na história da literatura, uma personagem tão improvável tornar-se tão apaixonante. Vai para a mochila.