“Lusofonia” Ă© um conceito ambĂguo e gelatinoso, que urge “descomplexificar”, para que possa de facto ser operacionalizado de acordo e no sentido de materializar as intenções mais generosas que levaram a colocá-lo no centro da construção da chamada comunidade de paĂses de lĂngua portuguesa. Se isso nĂŁo for feito, dificilmente tal comunidade se converterá numa verdadeira comunidade de povos.
Assim, os portugueses precisam de despir-se do complexo de superioridade derivado da convicção de muitos deles de que, supostamente, sĂŁo os “donos” da nossa lĂngua comum. Talvez careçam, tambĂ©m, de rever as suas mĂşltiplas origens e reconfigurar a sua identidade, assumindo-se mais como “portugueses” (euro-árabe-africanos) e menos como “lusitanos”.
Os brasileiros, por seu turno, precisam de libertar-se de uma contradição que tem tolhido a sua vocação para se afirmarem como uma autĂŞntica potĂŞncia global: a sua tendĂŞncia natural para olhar apenas para dentro, como paĂs-continente que Ă©, e, simultaneamente, o complexo de inferioridade das suas classes dominantes e da sua classe mĂ©dia, que “quer ser americana”, tal como no passado queria ser “francesa”.
Arrisco-me a dizer que o Brasil precisa de pensar um projeto de afirmação internacional que passe, sem se esgotar, pela afirmação de uma lusofonia abrangente. Afinal, o paĂs, alĂ©m de ser o maior usuário da lĂngua portuguesa, Ă© tambĂ©m, por exemplo, o que mais tem contribuĂdo para a expansĂŁo da mesma na Internet ou na elaboração de artigos cientĂficos, o que Ă© fundamental para aumentar o seu peso geopolĂtico.
Quanto aos africanos que adotaram o portuguĂŞs como lĂngua oficial nos seus paĂses, precisam de assumir plenamente todas as consequĂŞncias dessa decisĂŁo polĂtica, que foi e continua a ser fundamental nĂŁo sĂł para a sua unidade, mas tambĂ©m para a sua identidade nacional. Hoje, o portuguĂŞs Ă© a lĂngua materna de milhões de africanos (em Angola, já Ă© a principal lĂngua-mĂŁe). AlĂ©m da sua Ăşnica lĂngua de comunicação entre todos os grupos internos, Ă© a sua primeira lĂngua de comunicação internacional.
Desde que os portugueses contactaram (nĂŁo “descobriram”) pela primeira vez os africanos, a sua lĂngua foi e continua a ser influenciada, transformada e enriquecida por certas lĂnguas africanas, tornando-se, por conseguinte, na lĂngua de todos os seus falantes. Os complexos que alguns africanos ainda alimentam relativamente ao portuguĂŞs nĂŁo tem, pois, o menor sentido.
O facto Ă© que a lĂngua portuguesa possui hoje uma comprovada natureza pluricĂŞntrica. Espanta, pois, que, no dia a dia, muitos nĂŁo o reconheçam. A professora portuguesa Margarita Correia escreveu no passado dia 28 de novembro um artigo no Diário de NotĂcias, publicado em Lisboa, no qual denuncia a discriminação por razões linguĂsticas de que sĂŁo vĂtimas cidadĂŁos brasileiros em Portugal. Ela cita, entre outros, os casos de dissertações e teses de alunos brasileiros que sĂŁo discriminados apesar de possuĂrem, sublinha ela, “competĂŞncias e currĂculos inatacáveis”.
Na verdade – diga-se – a maka [problema] Ă© geral: as incompreensões sĂŁo mĂştuas e ocorrem em todos os contextos onde a nossa lĂngua comum Ă© falada.
NĂŁo espero grande coisa dos nossos governos para encontrar soluções para esse e outros problemas e, de facto, materializar a ideia de lusofonia, entendida esta Ăşltima simplesmente como cooperação ampla e multiforme entre os povos dos paĂses e outras comunidades de lĂngua portuguesa existentes no mundo. Acredito mais nas iniciativas dos cidadĂŁos, agentes culturais, empresas e outros atores da sociedade civil. Se os governos apoiarem essas iniciativas, já será de bom tamanho.
A literatura pode ajudar. Para isso, ela precisa de circular. É verdade que as relações (intertextuais?) entre certos autores de lĂngua portuguesa, no passado ou no presente, sĂŁo conhecidas, sobretudo dos especialistas, mas talvez tenha havido uma diminuição da circulação de livros, bem como de jornais e revistas, entre os nossos paĂses, relativamente a perĂodos anteriores (atĂ© meados do sĂ©culo 20).
A verdade Ă© que, atualmente, poucos sĂŁo os autores portugueses publicados no Brasil e menos ainda brasileiros editados em Portugal. “Os leitores portugueses nĂŁo conseguem ler os escritores brasileiros!”, juram certos editores lusitanos. Por outro lado, os autores portugueses e brasileiros simplesmente nĂŁo chegam aos paĂses africanos de lĂngua portuguesa. Mais grave ainda, os autores destes Ăşltimos paĂses tambĂ©m nĂŁo circulam entre eles. De igual modo, nĂŁo sĂŁo comummente publicados quer em Portugal quer no Brasil.
“Não há mercado!”, dizem todos. Verdade? Ou será apenas consequência do preconceito cultural e, principalmente, da falta de visão profissional? Qualquer aprendiz de marketing sabe o que isso significa: “fazer mercados”, ou seja, criar necessidades novas, atrair consumidores, ir ao encontro deles e outras estratégias.
No caso da publicação de autores africanos no Brasil, parece que começa agora a haver um maior interesse nesse sentido. Eu nĂŁo tenho dĂşvidas: num paĂs com a realidade histĂłrica, Ă©tnica, antropolĂłgica, sociolĂłgica e polĂtica do Brasil, há inevitavelmente um grande nĂşmero de potenciais leitores das literaturas africanas contemporâneas. O assunto, como todos, deverá ser tratado sob vários ângulos. Prometo fazĂŞ-lo em prĂłximo texto.
* O autor escreve de acordo com o novo acordo ortográfico e a variante angolana da lĂngua portuguesa.