🔓 Livros de viagem

Numa viagem, os livros são parte dos chamados amorosos, que embalam lembranças indeléveis
Ilustração: Maíra Lacerda
01/04/2023

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

O encontro entre livros e quem os lê acontece de várias formas e, sendo o livro um objeto, supõe-se ser o sujeito quem o busca, ainda que não sejam incomuns as histórias em que o livro encontra o leitor. Essa descoberta costuma ocorrer devido a uma demanda latente, acionada pelo olhar despretensioso, pela súbita aparição de um título ou nome de autor, por uma quarta capa convidativa. Fortuito momento, esse, em que um livro chama de forma imperativa por seu leitor. Como em casos amorosos, uma faísca pode deflagrar a paixão. Bibliotecas e livrarias são, por excelência, os espaços propícios a isso.

O acesso ao livro é marcado ainda por uma seletividade, seja financeira, social, ou vinculada a um sistema pessoal de referências. Se alguns desses limites de acesso vêm, muito lentamente, sendo deixados para trás, o círculo que nos envolve dita suas determinações. Como buscar uma coisa que você não sabe que existe?

Uma viagem marca a quebra de paradigmas. Ao menos, uma viagem bem usufruída. O lugar é outro, o tempo se faz outro, o novo reclama atenção. O conhecido ato de passear por livrarias se transforma em experiência inusitada: destinada a outro público, é diversa a produção ali exposta, por vezes é diverso o idioma, e serão outras, inevitavelmente, as vozes que nos chamam. A célebre frase atribuída a Picasso — “Eu não procuro, eu acho” — tem aqui o seu valor.

O que achamos em recente viagem à Patagônia? O roteiro começou em Ushuaia, na Argentina, onde chegamos à livraria local procurando pela obra de Bruce Chatwin, Na Patagônia. Entre as edições inglesa e argentina, optamos pela primeira, em função do idioma original e da capa gráfica, a evocar as cores da paisagem natural. Atentas aos chamados amorosos, fomos encontradas pela belíssima edição de Bambi, una vida en el bosque, ilustrada por Benjamin Lacombe, com prefácio do filósofo Maxime Rovere. Trazer este volume pedia ponderação, em razão do preço e do peso que representaria na bagagem.

Não resistimos. A obra de Lacombe é luxuriante, tem páginas rendilhadas, folhas triplas que se abrem em amplo quadro de seis páginas; os desenhos são elaborados, com predominância de uma expressão art nouveau, junto a pinturas monocromáticos a crayon, em contraste com guaches exuberantes. A par de uma linguagem tradicional, Lacombe tem, na exploração de frames, um diálogo evidente com o cinema e com produções contemporâneas, nas quais a ilustração toma a si parte da narrativa, em lugar do discurso verbal. Ainda da Boutique del Libro, trouxemos um livreto de Alan Pauls sobre criação literária: Fallar otra vez, um anúncio a favor da escrita imperfeita, em convite a fazer da falha um exercício perpétuo e original.

Em Puerto Natales, Chile, uma loja de produtos típicos abrigava um pequeno canto com livros. De lá vieram, Pikinini, El calafate e Gabriela, la poeta viajera. Surpresa bem significativa, essa loja. Entre camisetas, peças para adorno doméstico ou pessoal, pequenas telas, ímãs de geladeira, lá estavam livros de qualidade surpreendente, itens que — supõe-se — não seriam encontrados em meio aos souvenirs. E foi lá, na tímida e competente livraria, que nos demoramos mais tempo, e de onde veio também grande fruição. Se Lacombe é um nome já admirado, e Bambi um clássico, cuja referência visual se faz reinventada na edição que nos chegou às mãos, o mesmo não acontece em relação às autoras e aos autores das demais obras. Os projetos, no entanto, revelam um imaginário local e histórico dos mais ricos e instigantes.

Gabriela, la poeta viajera, de Alejandra Toro, com ilustrações de Isabel Hojas, integra a Lista de Honra do International Board on Books for Young People, além de distinção recebida do Banco del Libro, da Venezuela. Síntese da vida de Gabriela Mistral, a obra tem foco em suas constantes viagens, como professora de zonas rurais no Chile, ou como embaixadora da cultura de seu país. A ilustração em aquarela toma o texto caligráfico como componente chave, em construção similar a uma textura, na qual se pode perceber um subtexto verbal, em claro diálogo com as próprias linhas de vida da poeta.

As linhas estilizadas de grafismos primordiais, característicos de povos originários da região que, posteriormente, se configurou como América do Sul, são a base das ilustrações de Paloma Valdivia para o texto de Ana María Pavez e Constanza Recart. El calafate: cuento basado en una leyenda aónikenk relata a história da avó que não consegue mais acompanhar a tribo em seu deslocamento sazonal, e, apesar dos esforços contrários da família, se deixa ficar em sua tenda. A relação com a neta é especialmente estreita e, na volta do povo à aldeia, será ela a descobrir que, onde estaria a avó, há agora uma árvore, que tempos depois frutificará.

A importância dos ancestrais e o reconhecimento de uma jornada cultural configuram esse conto de origem, que traduz nos tons e padrões das estamparias uma história a preservar. O glossário ao final, detalhado no desenho e no texto verbal que o acompanha, permite identificação e respeito com a história precedente da humanidade.

O compromisso que impõe a necessidade de não permitir a repetição de injustiças e crimes, que marcaram o processo de colonização, mostra-se patente em Pikinini. Em coragem incomum, Raquel Echenique ilustra a narrativa de José Miguel Varas, jornalista e escritor, que tomou o testemunho de dona Clementina Fidret Bonard, em 1958, na cidade chilena de Punta Arenas. A narrativa em primeira pessoa não economiza nas tintas dramáticas para relatar a selvageria com que os Onas ou Selkman foram tratados até o extermínio. Também a ilustradora não poupa os olhos de quem lê do mar de sangue sobre a terra da Patagônia, fosse do lado chileno ou argentino.

A compartimentação em ilustrações sequenciais, em uso semelhante ao de Lacombe, confere um tom narrativo diferencial, em que a paleta de cores em tons terrosos sublinha o impacto do azul — usado principalmente para as roupas dos colonos e os ambientes dominados pelo branco — e do vermelho, sangue vertido que contamina toda a terra. Uma Patagônia feita de sangue.

Uma viagem marca a quebra de paradigmas, dissemos. Encontramos, nessa viagem, uma paisagem natural deslumbrante, livros que narram e poetizam o mundo, que o vertem em perplexidade, náusea, anseio e deslumbramento… A paisagem se fazia anunciar, embora em pequenas porções, por fotos e anúncios turísticos; os livros, porém, foram achados. Sem se mostrarem previamente em nossas ferramentas usuais de busca, chegamos a eles por meio da presença mútua em um mesmo lugar.

Não voltamos para casa da forma como partimos. A paisagem de fotos ou cartões-postais desfaz-se em palidez em face da visão direta, cara a cara com o glaciar. E os livros, bem, os livros são parte dos chamados amorosos. Que paradigmas resistem ao amor ou ao deslumbramento? O que nos diz, você, leitora, leitor? Que livros têm te levado a escutar esses chamados e por eles se deixar guiar?

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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