🔓 Literatura expandida

Veiculada por suportes multimodais, a produção de Leonilson dificilmente é classificável ou reduzível a rótulos
Ilustração: Obra de Leonilson (Reprodução)
01/04/2023

José Leonilson Bezerra Dias faleceu há trinta anos, e sua obra nunca foi tão conhecida. Se a régua do tempo serve para testar a qualidade de um autor, estas décadas já confirmam que Leó cresceu em público postumamente. Várias exposições, documentários e livros surgiram (com destaque para o belíssimo Catalogue Raisonné) — e, dentre as pesquisas que se debruçam hoje sobre o artista, ressalto o trabalho de Lúcio Flávio Gondim, Leonilson expandido. Recentemente defendida no doutorado de literatura comparada na Universidade Federal do Ceará, esta tese — que pode ser acessada online, pelo repositório institucional da UFC — é uma das mais sensíveis investigações que li sobre o diálogo entre literatura e artes plásticas.

Logo no resumo, o pesquisador anuncia a escolha por um elemento, a rosa dos ventos, como um híbrido sintetizador da obra de Leonilson, que “em 36 anos de vida construiu um repertório de cerca de quatro mil produtos artísticos e muitas incógnitas imagético-verbais”. A partir daqui, pensamos: talvez o enigma da obra de Leonilson (que, entretanto, à primeira vista pode parecer tão simples, tão espontânea) seja o que, no âmbito estrutural, continua a instigá-la. Veiculadas por suportes multimodais, suas produções são dificilmente classificáveis ou reduzíveis a rótulos. Livres para circularem por múltiplas camadas, suas peças incluem desenhos, pinturas ou bordados que sempre fazem a linha transitar entre o traço e a palavra. Ora, essa fronteira diluída também se aplica hoje a certas práticas literárias, misturadas ao visual e ao performático…

Em conteúdo, o aspecto subjetivo ergue-se como um grande atrativo em Leonilson: “Seja costurando por influência da mãe ainda na infância, na pintura das primeiras composições e até na produção de fanzines (pequenas publicações com colagens), esse artista cearense, mundivagante — como é próprio de seus conterrâneos — almeja falar de seus fluxos e dores, assumindo sua subjetividade como meio de expressão”. A identificação do público acontece pelo tom diarístico; “entre frases e bordados”, Leó desenvolve a história de suas tristezas, sobretudo depois de ter sido diagnosticado com HIV, numa época em que o tratamento da doença ainda não era eficaz.

Transitando entre memória e invenção de si mesmo, “Leonilson passa a ter uma difusão popular cada vez mais intensa, transformando sua solidão e/ou carência em espelho para que seu público se veja e compreenda seu interior. Vida e arte, agrupadas, fazem da escrita de si uma escrita do mundo e, de Leonilson, um expoente de sucessivas gerações para as quais pautas de identidades marginalizadas encontram ressonância na produção artística” — lemos na pesquisa citada.

O deslizar entre a linguagem imagética e verbal justifica a ideia de uma literatura instável, ambígua, expandida; uma literatura em processo, que, assim como a própria intimidade que marca a obra de Leonilson, não se completa jamais e, exatamente por isso, está disponível para ser revista e revigorada, sem cessar. Além disso, o conceito da inespecificidade da arte vem ancorar, sob tal visada, os trabalhos de Leonilson no âmbito contemporâneo, pelo seu estilo polimorfo.

Florência Garramuño é lembrada como referência nos estudos sobre as práticas de Nuno Ramos, que igualmente fogem a uma classificação em única linguagem, constituindo na verdade “um espaço-tempo sensorial”. Segundo a pesquisadora, tais realizações artísticas estariam acontecendo por meio de um “modo ou dispositivo que evidencia uma condição da estética contemporânea na qual forma e especificidade parecem ser conceitos que não permitem dar conta daquilo que nela está acontecendo”.

Além disso, pode-se também tratar de “literatura pós-autônoma”, conforme Josefina Ludmer, na qual os limites estéticos da escrita se estendem e abarcam marcas de outras modalidades artísticas. Trata-se de uma reformulação que mescla conceitos como o de literário e não-literário. Diante da questão que trata de um possível ponto de partida, qual seja, a tendência de Leonilson moldar as artes visuais por uma perspectiva literária ou expandir a literatura para uma perspectiva multimídia, o pesquisador faz o que se deve: revira o seu objeto de estudo, olha o mesmo fenômeno de ângulos diferentes até surpreendê-lo sob mais de um viés.

Lúcio Flávio Gondim busca o avesso de Leonilson, descostura o tecido de sua obra, puxa-lhe os fios, para ver de que matéria a trama foi feita. Com esse gesto, longe de destruir o produto que analisa, consegue desdobrá-lo, propagá-lo de uma nova maneira. Afinal, é tarefa do espaço acadêmico aumentar as diretrizes do conhecimento sobre um determinado assunto, e esta tese alcança toda a grandeza no que se propõe, desconstruindo Leonilson para aprofundá-lo e torná-lo ainda mais abrangente — não só no que diz respeito às questões técnicas, conceituais e mesmo historiográficas das suas criações artísticas, mas sobretudo, penso eu, no que tange às possíveis leituras, abertas e potencialmente infinitas, que tais peças inspiram, no diálogo com as recepções que surgem. Lúcio Flávio é um leitor que conduz, guia e articula as chances íntimas que qualquer um(a) de nós pode ver desenvolvidas, a partir da estética de Leó. Nesse sentido criativo, é um leitor-artista, um pesquisador performer, um escritor que também “pinta e borda”.

No intuito de aplicar ao seu próprio trabalho um teor polivalente, para além de uma profunda investigação bibliográfica, Lúcio Flávio Gondim abriu seu campo metodológico, conforme explica à página 115 da tese: “foi criado também para esta pesquisa um espaço de troca e de atualização constante a respeito de nosso objeto de pesquisa. Tratou-se de um perfil na rede social iminentemente imagética Instagram chamado ‘Leonilson Expandido’. Fundada desde o início da pesquisa de doutorado, a página serviu primeiramente como uma convocatória e, logo em seguida, como um relicário da produção verbovisual de artistas, admiradores e pesquisadores da obra de Leonilson. A reunião de tais trabalhos e afetos foi possível especialmente pelo mecanismo de uma hashtag com o nome do artista”.

Dessa maneira, através de um aprofundamento das influências de Leonilson, com a análise da obra de outros artistas que com ele dialogam, demonstra-se, na prática, como essa expansão se propaga. A grandeza de Leó extravasa pelas ramificações possíveis — e potencialmente intermináveis — com outras obras, biografias e estéticas. É mais um momento de profunda coerência na tese, pois não apenas se desenvolve aqui uma investigação com texto híbrido, poético e científico, e permeado pelas imagens de análise, mas também se demonstra de fato a hipótese de expansão apresentada, fazendo uma pesquisa ainda mais abrangente do que poderíamos imaginar.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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