šŸ”“ Ligue os pontos (2)

O que Ć© literatura? O que Ć© arte? O que Ć© criatividade?
Ilustração: Aline Daka
01/03/2023

>>>Assim falou Asas Lusco-Fusco >a insistente voz em minha cabeƧa:

>>>Literatura brasileira contemporânea >muitos medianos >poucos mediúnicos

>>>Umberto Eco >no ensaio Obra aberta >sugere que hÔ basicamente dois tipos de escritor >>>1. O escritor que busca escrever os livros que o público quer ler (literatura-artesanato) >>>2. O escritor que busca formar um público para os livros que ele estÔ escrevendo (literatura-arte) >>>Mas Umberto Eco não viveu o suficiente pra conhecer o terceiro tipo >>>3. A inteligência artificial >que veio estragar a dança das crianças >obrigando-as a voltar à fundamental pergunta >>>O que é literatura? >>>O que é arte? >>>O que é criatividade?

>>>Como saber se uma pessoa que se comporta virtuosamente Ć© mesmo virtuosa >e nĆ£o uma pessoa viciosa simulando uma virtude? >>>Como saber se uma pessoa que se comporta viciosamente Ć© mesmo viciosa >e nĆ£o uma pessoa virtuosa simulando um vĆ­cio? >>>O problema das virtudes e dos vĆ­cios Ć© anĆ”logo ao problema das inteligĆŖncias artificiais >>>Alan Turing nos avisou que nĆ£o importa o grau de sofisticação da tecnologia envolvida: hoje ou amanhĆ£ >jamais poderemos afirmar que determinada mĆ”quina Ć© inteligente >>>Tudo o que poderemos afirmar >por meio do Teste de Turing >Ć© que determinada mĆ”quina exibe um comportamento inteligente >>>Penso que o mesmo vale pras pessoas >>>A menos que desenvolvamos a habilidade da telepatia {sonho com isso hĆ” dĆ©cadas} >em momento algum jamais podemos afirmar que determinada pessoa Ć© virtuosa ou viciosa >>>Tudo o que podemos afirmar Ć© que determinada pessoa exibe um comportamento virtuoso ou vicioso >>>Ɖ óbvio que essa conclusĆ£o atinge fortemente os textos literĆ”rios >pobrezinhos >>>Os textos literĆ”rios sĆ£o expressƵes de um autor >uma forma de comportamento simbólico >>>Muitos leitores incompetentes adoram determinar o carĆ”ter nobre ou repulsivo de um autor >analisando as ficƧƵes e os poemas desse autor >>>E obviamente cometem os equĆ­vocos mais bizarros >>>Pessoas adoram simular virtude nas redes sociais e tambĆ©m >no caso dos escritores >nos livros que publicam >>>No jogo social nada impede que um escritor misógino >homofóbico >racista >fascista >imperialista {ou tudo isso} publique ficƧƵes e poemas politicamente corretĆ­ssimos >>>A pĆ”gina do Word e as livrarias aceitam tudo >atĆ© mesmo o oportunismo lucrativo >>>Se a proverbial ā€œcoragem de desagradarā€ dos modernistas nĆ£o faz mais sucesso nem paga boleto >entĆ£o >na arriscada busca por elogios e dobrƵes de ouro >praticar a fingida ā€œcoragem de agradarā€ parece ser uma estratĆ©gia mais eficiente >certo?

>>>Comigo >trabalho acadêmico >se não tiver sido escrito pelo ChatGPT >eu nem folheio

>>>Em breve >com o avanƧo da InteligĆŖncia Artificial >todo escritor se transformarĆ” no Amigo do Escritor >>>Explico >na hora do chope o Amigo do Escritor sempre aparece com uma ā€œideia genialā€ >por exemplo >pra um romance ou uma saga em cinco volumes >e passa uma hora fornecendo detalhes >tentando convencer o escritor a escrever a tal história >com o argumento óbvio de que ā€œnós dois vamos ficar ricos, meu chapaā€

>>>Uma avaliação cem por cento SINCERA de um livro >>>Quantos escritores realmente têm a coragem de querer? >>>Quantos leitores realmente têm a coragem de oferecer?

>>>Por conta do minicurso de fĆ©rias Mundo-Vertigem: delĆ­rios da linguagem, decidi reler dois romances brasucas lanƧados hĆ” mais de vinte anos >Encrenca (2002), de Manoel Carlos Karam, e AdorĆ”vel criatura Frankenstein (2003), de Ademir Assunção >>>Qual nĆ£o foi minha surpresa ao encontrar >no final do texto das orelhas dessas duas obras-primas fora de catĆ”logo >minha própria assinatura… >>>O que demonstra que o pronome possessivo MINHA >na frase anterior >nĆ£o faz o menor sentido >>>MINHA de quem, manĆ©?! >>>HĆ” mais de vinte anos vocĆŖ nem existia >>>Tua memória estĆ” certĆ­ssima nessa natural traição >>>Quem escreveu aqueles textos foi OUTRO >>>AlguĆ©m que jĆ” deixou de escrever textos-de-orelha hĆ” muito tempo >>>AlguĆ©m-fantasma >que vocĆŖ nem chegou a conhecer em profundidade >>>{Falando sĆ©rio >espero que nĆ£o haja nenhuma relação de causalidade entre aquela assinatura e o fato de os maravilhosos Encrenca e AdorĆ”vel criatura Frankenstein jĆ” estarem fora de catĆ”logo >>>Mesmo assim >seu eu fosse vocĆŖs >pensaria duas vezes antes de me convidarem pra escrever um texto de orelhas}

>>>Quero ver o que vai acontecer quando o ChatGPT >ele mesmo >exigir pagamento de direitos autorais >>>No livro Homo Deus >Yuval Harari fala de IAs acionistas trilionĆ”rias que dominam o sistema financeiro internacional…

>>>Pretendem fazer um elogio literĆ”rio? >Duas formas bĆ”sicas >>>1. Aplaudir uma obra vaiando outras obras >Por exemplo: o conto Mandrake >de Rubem Fonseca >pƵe no chinelo tudo o que os epĆ­gonos jĆ” publicaram >E os epĆ­gonos de Rubem Fonseca sabem disso >>>2. Aplaudir uma obra sem desmerecer outras obras >Civilizadamente >Ɖ mais saudĆ”vel >mais agradĆ”vel… >PorĆ©m muito menos prazeroso >VocĆŖs sabem >gostoso mesmo Ć© escarnecer >Viva a vaia, galera >Yabba dabba doo! >Ɖ fogo no parquinho!

>>>CrĆ­tica literĆ”ria Ć© ciĆŖncia ou pseudociĆŖncia? >>> Ɖ certamente ciĆŖncia >mas nĆ£o uma ciĆŖncia universalista >igual a fĆ­sica >a quĆ­mica e a astronomia >>>Ɖ uma ciĆŖncia que sofre o peso da subjetividade do valor estĆ©tico >tĆ£o volĆŗvel >filho da inconstĆ¢ncia da História >>>O que hoje Ć© considerado sem importĆ¢ncia amanhĆ£ poderĆ” ser considerado fundamental >e vice-versa >>> CrĆ­tica literĆ”ria Ć© uma ciĆŖncia cujas verdades (sempre provisórias) podem virar dogmas >e geralmente viram >como acontece na filosofia e na religiĆ£o >>>Tomados todos os cuidados >crĆ­tica literĆ”ria certamente Ć© ciĆŖncia >>>{Exceto para o doutor Sheldon Lee Cooper >prĆŖmio Nobel de fĆ­sica >que nĆ£o vĆŖ muita diferenƧa entre crĆ­tica literĆ”ria >design inteligente >astrologia >homeopatia e psicanĆ”lise}

>>>Encontrei minha função neste mundo >encher o saco dos cossacos >>>Torquato Neto diria >ā€œdesafinar o coro dos contentesā€ >>>Jamais serei um Torquato Neto >entĆ£o vou de ā€œencher o saco dos cossacosā€ mesmo

>>>Fazendo o quĆŖ? >>>Relendo o breve romance PapĆ©is de Maria Dias >de Luci Collin >>>O que Ć© a vida de uma pessoa? >>>Uma linha reta contĆ­nua em direção Ć  morte? >>>Ou uma sequĆŖncia descontĆ­nua de eventos que podem ser rearranjados ao sabor da memória aleatória? >>>Sendo assim, quantas personas-eventos aleatórias cabem numa pessoa-sequĆŖncia descontĆ­nua? >>>Uma só Maria Dias ou cinco solitĆ”rias Marias Dias? >>>Ou uma atriz Maria Dias interpretando cinco papĆ©is Marias Dias? >>>Nesse romance inventivo e muito divertido >Luci Maria Dias Collin espalhou cenas de cinco — ou de uma, ou de muitas outras? — personagens intrigantes >configurando mĆŗltiplos mistĆ©rios num jogo de esconde-esconde >>>Um romance fora da curva >mas nĆ£o fora de catĆ”logo >felizmente >>>Mays uma precyosidade da muy essencyal & dysparatada byblioteka do LunaLaby [Laboratƶryo de Lyteratura LunƤtyka]

>>>Um livro espantoso nos pƵe no centro do universo >>>Planetas >estrelas >galƔxias distantes >durante a leitura tudo gira ao nosso redor

Olyveira Daemon

Ɖ ficcionista e crĆ­tico literĆ”rio. Ɖ autor deĀ Poeira: demĆ“nios e maldiƧƵesĀ eĀ Ć“dio sustenido, entre outros.

Rascunho