🔓 José Eduardo Gonçalves

Leia quatro contos inéditos de José Eduardo Gonçalves
Ilustração: Ramon Muniz
01/03/2023

A piscina
Minha mulher quer construir uma piscina no jardim. Pequena, ela diz. O jardim fica na parte de trás de nossa casa e era, quando compramos o lote, um emaranhado de árvores frutíferas e de mato que crescia sem controle desde que a proprietária falecera. Compramos o lote das filhas a um bom preço e construímos a casa onde moramos há quase trinta anos. Só nós dois e o vira-latas que recolhemos da rua em um dia de ventania. O jardim não existia, foi surgindo aos poucos. Primeiro, arrancamos o mato. As árvores despontaram em sua imponência, ainda que algumas já não dessem frutos. Por isso, demos fim ao enorme abacateiro, depois de três anos sem um único abacate perfeito. O tronco está todo bichado, não vai mais dar fruto e periga até cair, disse o jardineiro em sua sentença acolhida de imediato por minha mulher. Depois, foi o fim da goiabeira que ficava na divisa com o vizinho à direita. As goiabas, preciso reconhecer, estavam sempre podres por dentro. Sem o abacateiro e a goiabeira, a grama foi aparada e compramos sacos de pedras roliças e de tamanhos variados que espalhamos em torno de uma fonte de pedra-sabão que agora orna o jardim, bem no lugar onde antes estava o abacateiro, mas que nunca funcionou a contento. A laranjeira, plantada logo em nosso primeiro ano, não cresceu o que deveria e também foi eliminada. A amoreira resiste, quase encostada ao muro que faz a divisa da casa com o terreno da prefeitura. O pé de limão não teve a mesma sorte: cedeu espaço para a trilha de pedras maiores que liga a varanda dos fundos até a casinha da cachorra. Assim a gente não suja os pés na grama molhada, foi o que a minha mulher disse. O jardineiro — este já era outro, o primeiro tinha sumido — ficou em silêncio. Como uma espécie de compensação, minha mulher plantou uma pitangueira na lateral esquerda do jardim. Como se vê, já é um jardim. O problema agora são as três enormes jabuticabeiras. Devem ter mais de cinquenta anos de vida e todos os anos dão jabuticabas saborosas, com personalidades distintas. A jabuticabeira que fica quase encostada à varanda é a mais exuberante, tem galhos longos e é muito pródiga em frutos pequenos, de casca lisa e fina. As jabuticabas mais deliciosas são as da árvore mais recolhida, a menos visível, encoberta pela arrogância da mais frondosa. Apesar da aparência frágil, esta árvore apresenta frutos grandes, de um roxo quase preto. A mais tímida das árvores fica em posição intermediária entre as outras duas e não se importa em dar cria todos os anos. Às vezes ela falha, parece preguiçosa em seu labor. Suas frutas são pequenas e têm a casca mais grossa, mas a polpa é consistente e tem muito sumo. As três se completam, cúmplices de um território que, aos poucos, vai se moldando e perdendo o ar selvagem e febril, que tanto nos encantou no início. Pequena, diz a minha mulher. Uma piscina que vai receber a luz do sol em grande parte do dia — desde que cortemos uma das jabuticabeiras. Duas já não são suficientes? É assim que ela responde à minha argumentação contrária ao corte da árvore. Eu resisto à ideia enquanto posso, sem nem mesmo saber por quê. Somos apenas nós dois. Nunca tivemos filhos, desistimos depois de anos de tentativas. Só nós dois e a cachorra, que veio bem depois. Agora que estamos envelhecendo, sinto que minha mulher não quer ir mais à piscina do clube do bairro. Ela não diz isso claramente, mas eu não enxergo outra explicação para o fato de ela querer uma piscina quando podemos usar uma que está a menos de quinhentos metros de distância. Eu também não gosto da companhia de estranhos, do alvoroço de crianças e daquela urgência que as pessoas demonstram ter em relação ao lazer. Costumava aceitar a ida ao clube com resignação, sem alegria, mas nem isso mais se cogita. Ela quer uma piscina pequena. O jardim ficou muito bonito, depois de anos de paciente elaboração. O mato sumiu por completo. Agora são vasos grandes de cerâmica e muitas flores, coloridas. Azaleias, bromélias, beijinhos, dálias, agapantos, pacovas, orquídeas, rabo de raposa, clúsias, lavandas, dasilírios, suculentas e até uma pata de elefante que nunca vingou direito. O mato selvagem foi dizimado, pedras floresceram sobre a grama, já é possível identificar com facilidade quando a cachorra faz suas necessidades. Está tudo limpo, bem arrumado, de uma beleza ordenada que me deixa quieto, mais calado do que já sou. Tudo tão certo que algo parece dissonante, fora do lugar. Nem sempre a vida tinha sido assim. Fui bem arruaceiro e até irresponsável, na juventude. As regras eram desrespeitadas com certa frequência. Meus amigos (nenhum deles era flor que se cheire) me chamavam de “o louco da estepe” — sim, teve uma época que eu andava com o livro do Herman Hesse debaixo do braço, perguntando já leu? pois leia, sua vida vai mudar. A minha não mudou nada. Enchi daquilo e passei ao Lobsang Rampa, depois ao Krishnamurti, até trocar tudo por Burroughs, Henry Miller, Bukowski, Verlaine e outros pirados, mas isso já é outra história. Quero dizer que eu fazia as coisas do meu jeito. Meus amigos bebiam muito, mas eu bebia mais. Certa noite, depois de muita farra, saímos para ouvir os cachorros latindo lá do alto do morro da antena. A lembrança daquela sinfonia canina me arrepia. Na descida do morro, a moto surgiu à frente do carro como um fantasma moribundo e foi preciso um movimento brusco e seguro para se desviar dela e não despencar no abismo ao lado. Não sei como consegui aquela proeza. O sujeito da moto se safou ileso e nós também. Bateu um silêncio estrondoso entre nós, depois o Dilson — irmão mais velho da Doris, com quem me casei — disse apenas cara, você nos salvou, e a gente começou a rir, de nervoso e alívio, primeiro baixinho, depois às gargalhadas. Saí dali como o herói improvável que jamais fui. Aquilo me deixava alucinado de uma alegria inexplicável. Lembro daquela noite e observo os antúrios no fundo do quintal. É provável que eles sobrevivam à piscina.

Ilustração: Ramon Muniz

O pai, o filho
O meu pai passou da conta. Ele agora me pediu para engraxar os seus sapatos, acredita? Eu me neguei a fazê-lo, claro. Ele me disse que seria bom aprender a fazer alguma coisa útil. Eu não penso a mesma coisa, nem sei o que seria útil. Ele insistiu, voltou a se referir a sapatos engraxados. Eu disse a ele que, se era para fazer alguma coisa, havia coisas mais interessantes a serem feitas, como ajudar os pássaros que entravam na biblioteca a encontrar o caminho de saída. Esta não é uma boa ideia, ele replicou, nem mesmo razoável, pois os pássaros costumam se refugiar nas estantes mais altas. Os pássaros e os livros são imprevisíveis, ele falou. Seria mais sensato, ele sugeriu, começar com atividades mais ao meu alcance. Como cuidar dos sapatos. Foi então que eu olhei com atenção para os seus sapatos, limpos e engraxados. Aquilo me intrigou. Eram os sapatos mais brilhantes que eu jamais vira. Confesso que me deu uma tristeza assim miúda ao pensar nas razões que levariam meu pai a me pedir algo que ele já fazia tão bem. Meu pesar durou pouco. Então eu disse a ele que talvez pudesse fazer aquilo, um dia. Falei por falar. Talvez eu só quisesse interromper aquela conversa que me parecia sem sentido, talvez fosse a sensação de que certas coisas são inescapáveis. O fato é que agora os sapatos não se desgrudam de mim. Eles estão comigo o tempo todo, mesmo quando estou dormindo, pois não deixo de sonhar com eles. Sofro quando os imagino sujos e maltratados. Um dia terei de cuidar deles. É o que me resta. O legado das ninharias.

Ilustração: Ramon Muniz

O lobo
Você pode contar como eram esses uivos? Eu sabia que essa pergunta iria surgir. Se havia uma questão para a qual eu deveria me preparar, era aquela. Inevitável. Por isso, pensei nela durante os dias que antecederam ao depoimento. Eu era o autor solitário da denúncia, cabia a mim justificá-la. Agora, quando a pergunta se coloca da forma como a imaginei, direta e sem meios-tons, calo-me. Tento encontrar alguma palavra que dê conta daquilo. Por que só eu fora capaz de ouvir os uivos? Não uma, não duas, mas por três noites consecutivas?

Tentei responder com alguma coisa que parecesse plausível, mas foi um fracasso. Gaguejei. Tropecei nas sílabas que se misturaram e saíram de um jeito irreconhecível, fazendo com que caretas de espanto e incredulidade me mirassem como se estivéssemos naquela brincadeira de quem pisca primeiro, olhos fixos esperando que eu fraquejasse. Meu rosto ficou ruborizado, senti a vermelhidão que surgia junto ao calor que me assaltava sem que eu pudesse fazer nada para conter a intromissão indevida. Meu corpo invadido, fustigado pela vergonha e ridículo. Os uivos são assim, eu queria dizer. Prestem atenção: assim. E não dizia. Eu não conseguia dizer nada que alguém cioso de sua dúvida pudesse colocar um pingo de fé. Como contar algo novo, que não se entende e não se nomeia?

Eles tinham paciência, me olhavam em silêncio, enquanto eu me debatia entre mexer os braços, abrir a boca ou bater os pés em sintonia com a minha desarmonia. Nenhuma palavra me acudia. Até que, subitamente, me agachei no piso de cerâmica fria, os braços tesos como patas, as pernas arqueadas como patas, eu queria dizer como eram os uivos e as palavras não vinham, então eu fiz aquilo. Foi como expulsar um corpo estranho, sendo eu já tão estranho naquela posição esquisita, na saliva grossa a encher a boca, nos olhos queimando, na pele que eu sentia escura e peluda. Uivei. Estão ouvindo agora? É isso o que eu escuto nas noites em que vocês dormem seus sonos velhos, desapaixonados. Não identificam esse animal? Não são capazes ainda de ouvir? No segundo uivo reconheci, afinal, uma fome que já não cabia em mim. Eles ainda tentaram se safar, mas eu fui mais rápido.

Ilustração: Ramon Muniz

A baleia
Nunca entendi muito bem as baleias. Até ser engolido por uma delas. Foi assim. Numa de minhas escapadas solitárias, afastei-me da praia mais do que o habitual. Eu devia estar muito atordoado para não perceber que tinha ido longe demais. O barco foi destruído em um temporal imprevisto, e eu, lançado ao mar sem qualquer esperança de sobrevivência, tal a violência das ondas. Ela me salvou antes que eu afogasse. Agora não quero sair de Eloá. Aqui tenho tudo de que preciso, até o carinho materno que sempre me faltara. Retribuo como posso. Retiro e devolvo ao mar todo o lixo que ela consome com ingenuidade —plásticos, tubos, seringas, embalagens, pneus, uma parafernália sem fim. Mantenho-a asseada, sem os entulhos indigestos. Alimento-me dos peixes que ela generosamente me oferta. Não sei se um dia voltarei a terra firme. Em noites de lua, Eloá permite que eu vá até a entrada de sua boca e admire o vácuo escuro do céu. Eu digo a ela: Querida, nunca entendi bem o universo.

José Eduardo Gonçalves

Nasceu em São João del-Rei (MG). É jornalista, editor e escritor. Autor dos livros Cartas do paraíso (Mazza, 1998) e Vertigem (Record, 2003), organizou o livro Ofício da palavra (Autêntica, 2014). É um dos editores da revista literária Olympio. Os contos aqui publicados integram o livro Pistas falsas, a ser lançado em breve pela Patuá.

Rascunho