É considerado uma lenda da cinematografia militar cubana e nĂŁo o sabĂamos. No que me diz respeito, nĂŁo me lembro mais como o conheci. SĂł sei que nos tornámos amigos hasta siempre. Fizemos vários trabalhos juntos, quando ele era realizador e câmara da produtora televisiva Dread Locks, do Nguxi e do Dias dos Santos, com a qual a agĂŞncia que tive atĂ© há poucos anos, a Movimento, colaborava. Como fotĂłgrafo, registou alguns atos da minha famĂlia. Convivemos de perto em numerosas ocasiões, em particular em casa do Nguxi, do Dias e do JoĂŁo Belisário.
A simplicidade era o seu traço definidor. Nunca me falou, portanto, do seu passado revolucionário. FĂŞ-lo, por certo, com pouca gente. Talvez devido ao espĂrito de solidariedade sul-americana, o tenha feito apenas com o Belisário, esse velho militante brasileiro que lutou contra a ditadura brasileira instaurada em 1964 e aqui veio parar em 1976, atraĂdo pelas promessas revolucionárias da Ă©poca.
A histĂłria de RaĂşl Booz – el negro Booz, como Ă© tratado carinhosamente pelos seus colegas – dá um romance. Esteve na GuinĂ©-Conacry e na GuinĂ©-Bissau em 1973, quando Fidel Castro se encontrou com o lĂder do PAIGC (Partido Africano da IndependĂŞncia da GuinĂ© e Cabo Verde), AmĂlcar Cabral, tendo filmado essa histĂłrica reuniĂŁo. Dois anos depois, quando Fidel anunciou, de comum acordo com Agostinho Neto, mas sem consultar os soviĂ©ticos, o desencadeamento da Operação Carlota (a ponte aĂ©rea que permitiu a intervenção das forças cubanas em auxĂlio dos combatentes do MPLA, a fim de travar a dupla invasĂŁo zairense e sul-africana em Angola), ele estava lá, registando tudo com a sua câmara.
Em 1975 e 1976, esteve nos combates cruciais contra as forças sul-africanas que haviam invadido o territĂłrio angolano. As suas imagens dos primeiros quatro militares sul-africanos capturados nesses combates, na regiĂŁo da Quibala, estĂŁo nos arquivos de muitas cadeias televisivas internacionais, tendo, na altura, influenciado o reconhecimento, por uma margem estreitĂssima, da RepĂşblica Popular de Angola pela OUA (Organização da Unidade Africana).
RaĂşl esteve tambĂ©m em vários outros paĂses africanos, que foram palco de tentativas revolucionárias, como a EtiĂłpia. Mas o seu sonho de há muitos anos – contaria ele mais tarde ao JoĂŁo Belisário – era morar em Angola. Assim, voltou para o nosso paĂs em meados dos anos 90, iniciando uma permanĂŞncia que acabaria por revelar-se imprevisĂvel e atribulada, digna, como iniciei esta coluna, de um romance.
O que sei Ă© que começou por trabalhar na TelevisĂŁo PĂşblica de Angola (TPA), onde chegou a integrar o projeto de produção daquela que seria a primeira grande novela angolana: O segredo da morta, do romance homĂłnimo de AntĂłnio de Assis JĂşnior. Seria uma novela de Ă©poca, como sonhava o entĂŁo diretor da televisĂŁo estatal angolana, Carlos Cunha. Devido Ă situação geral do paĂs, o projeto nĂŁo avançou. Angola tinha iniciado um perĂodo de drásticas mudanças polĂticas e econĂłmicas, com o advento do multipartidarismo e da economia de mercado, e RaĂşl Booz teve de virar-se para sobreviver, começando a realizar outras atividades, ao mesmo tempo que mantinha a sua colaboração com a TPA.
Foi nessa altura e nessas circunstâncias que nos conhecemos. Raúl acabou por permanecer em Angola durante cerca de 25 anos, partilhando connosco as dificuldades diárias da maioria da população. Nos últimos tempos, as suas dificuldades agravaram-se, em especial depois de um acidente doméstico, no qual queimou uma das pernas. A piorar as coisas, roubaram-lhe as câmaras de cinema e de fotografar, assim como o seu laptop de trabalho.
Um grupo de ex-colegas na TPA e de amigos vários, liderado pelo JoĂŁo Belisário, montou entĂŁo uma autĂŞntica “operação” solidária, para recuperar a debilitada saĂşde de Raul Booz e permitir o seu regresso ao paĂs natal. Graças a uma sĂ©rie de apoios individuais e institucionais, ele regressou em 17 de abril a Cuba, no voo da TAAG. AlĂ©m dos seus pertences pessoais e de várias lembranças de Angola, levou tambĂ©m duas câmaras e um laptop novos.
Depois de ter cumprido uma quarentena de sete dias por causa da Covid-19, já está, a partir de hoje, com a sua famĂlia – a mulher, os filhos e os netos –, assim como os antigos colegas, que, admiravelmente, sempre o aguardaram, apĂłs tantos anos de ausĂŞncia. Como combinado, a partir de agora saberemos uns dos outros pelo Whatsapp.
Hasta la vista, RaĂşl.
*** O autor escreve conforme o acordo ortográfico de lĂngua portuguesa e a variante angolana da lĂngua portuguesa.