🔓 Guerra, cultura e hipocrisia

A pretexto da invasão russa da Ucrânia e em nome da democracia, um novo macartismo parece estar a afiar os dentes no mundo ocidental e não só
Ilustração: Juliano Soares
14/03/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Uma onda de russofobia alastra atualmente pelo mundo, sobretudo no “eixo ocidental” (como se sabe, este conceito não é geográfico), motivada pela condenável decisão de Moscovo de invadir a Ucrânia, mas também insuflada pelas forças que pretendem a todo o custo fazer-nos esquecer que algumas das suas atitudes contribuíram, de qualquer modo, para a eclosão do conflito, pelo que também têm as mãos sujas de sangue.

Não me refiro às sanções gerais contra a Rússia e as suas principais figuras, cujos efeitos a história se encarregará de mostrar. A onda russófoba a que me refiro vai do lamentável e ignorante assédio de que são vítimas cidadãos russos em vários países ou de atitudes risíveis, como a do restaurante brasileiro que retirou o estrogonofe da sua ementa habitual, à censura aos mídias do referido país, ao boicote a desportistas e artistas russos e até ao cancelamento de seculares manifestações da rica e reconhecida cultura do país.

Se o assédio indiscriminado dos cidadãos russos é, além de preconceito deslavado, um sinal de burrice, pois muitos deles, se não mesmo a maioria, são contrários à política de Vladimir Putin, o boicote à imprensa russa, impedindo o mundo de ver o outro lado da guerra, põe a nu, como se isso fosse necessário, a hipocrisia do discurso ocidental acerca da liberdade de imprensa. Como em várias outras ocasiões no passado, o Ocidente expõe agora a sua própria hipocrisia sem qualquer pejo, confiado no peso avassalador da sua formidável barragem mediática, colocada em ação desde antes da invasão russa.

Em relação, particularmente, às notícias que temos tido nas últimas semanas sobre casos de russofobia cultural, porei de parte, esclareço, decisões como afastar o representante russo do Festival da Eurovisão, pois, tendo essas realizações um cunho institucional, tal decisão contém alguma racionalidade, concorde-se ou não com ela. Também não comentarei o afastamento por motu proprio de diversos artistas, em especial estrangeiros, que trabalhavam em companhias russas, por se tratar de decisões pessoais. Ou as medidas corporativas tomadas por empresas, igualmente estrangeiras, de deixar de trabalhar ou de ter relações comerciais com a Rússia (como a Globo, que suspendeu o fornecimento de novelas ao referido país).

Mas o que dizer, por exemplo, do afastamento do maestro Valery Gergiev pela filarmónica de Munique e da soprano Anna Netrebko pela companhia de ópera de Nova Iorque? Ou, mais absurdo ainda, o cancelamento de concertos de Tchaikovsky pela filarmónica de Zagreb? Ou, igualmente absurda, a decisão da Universidade de Milão de cancelar o estudo das obras de Dostoiévski?

Algumas dessas decisões, como o afastamento de artistas russos, têm sido tomadas, alegadamente, porque os mesmos têm evitado tomar posições públicas acerca da invasão da Ucrânia pela Rússia. É preciso dizer, desde logo, que essa imposição é anti-democrática, pois, por definição, a democracia dá a todos o direito de se posicionarem ou não (o sublinhado é intencional) sobre todo e qualquer assunto. Mais do que isso, e como afirma o economista americano Taylor Cohen, colunista da prestigiada Bloomberg, muitos daqueles que têm evitado tomar posição pública sobre este assunto fazem-no por medo de retaliação de Putin. Por conseguinte, forçá-los a isso, sob pena de despedimento, não pode ter outro nome senão crime. A propósito, Cohen tem denunciado o novo macartismo que, a pretexto da Ucrânia, está a afiar as garras nos Estados Unidos e, acrescento eu, em todo o eixo ocidental.

Além do campo da cultura, o desporto é outra área onde a invasão da Ucrânia pela Rússia está a servir de pretexto para manifestações de irracionalidade de todo o tipo, das quais a mais gritante foi a decisão de proibir os atletas paralímpicos russos de participarem nos Jogos Paralímpicos de Inverno.

Perante todos estes casos de assédio, chantagem e cancelamento de desportistas e artistas russos, a pergunta básica a fazer é se essas atitudes e decisões trarão a paz para a Ucrânia. Tyler Cohen, por exemplo, pergunta-se: “Quais são as provas de que boicotar artistas russos no estrangeiro vai ajudar a Ucrânia?”. O jornalista português Leonídio Ferreira, por outro lado, afirmou que “pensar que se pode cancelar a colossal cultura russa ao mesmo tempo que se apela aos russos para forçar Putin a mudar, ou mudar-se, não faz sentido”.

O maestro português Pedro Amaral, citado por Ferreira no Diário de Notícias (Lisboa) de 5 de março de 2022, não tem dúvidas: “A condenação intransigente da invasão não pode, em nenhum caso, confundir o Povo russo, a sua Arte e a sua Cultura com a insanidade dos seus dirigentes políticos”. O mesmo se diga, acrescente-se, do povo, da arte e da cultura de qualquer outro país.

Todas estas manifestações de russofobia, além de confirmarem os limites democráticos do Ocidente, trazem à tona igualmente a sua hipocrisia e a sua política de dois pesos e duas medidas no terreno que constitui o principal tópico deste artigo: as relações entre cultura e desporto e política.

Quantas vezes nos têm atirado à cara os arautos do pensamento liberal ocidental, em especial os colocados à direita no espetro político-ideológico, que desporto e cultura não têm nada a ver com política? Fizeram-no, por exemplo, quando os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos imitaram o gesto dos Panteras Negras nos Jogos Olímpicos de 1968 e fazem-no ainda hoje quando, em todo o mundo, desportistas de todas as modalidades se manifestam por qualquer causa; o mesmo acontece sempre que fazemos poesia política ou escrevemos romances e peças de denúncia, pois, segundo os referidos capatazes do cânone artístico, a arte política é “menor”.

A pretexto da Ucrânia, tal narrativa é abandonada sem qualquer explicação. Mas não se trata apenas de hipocrisia. A política de dois pesos e duas medidas em que as classes dominantes do Ocidente são useiras e vezeiras também é exibida em toda a sua obscenidade. Só para lembrar um exemplo, os EUA invadiram o Vietname e não foram banidos das competições desportivas internacionais nem os seus artistas foram cancelados.

Este é o mundo em que vivemos.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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