* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da lĂngua portuguesa, em formação.
Uma onda de russofobia alastra atualmente pelo mundo, sobretudo no “eixo ocidental” (como se sabe, este conceito nĂŁo Ă© geográfico), motivada pela condenável decisĂŁo de Moscovo de invadir a Ucrânia, mas tambĂ©m insuflada pelas forças que pretendem a todo o custo fazer-nos esquecer que algumas das suas atitudes contribuĂram, de qualquer modo, para a eclosĂŁo do conflito, pelo que tambĂ©m tĂŞm as mĂŁos sujas de sangue.
NĂŁo me refiro Ă s sanções gerais contra a RĂşssia e as suas principais figuras, cujos efeitos a histĂłria se encarregará de mostrar. A onda russĂłfoba a que me refiro vai do lamentável e ignorante assĂ©dio de que sĂŁo vĂtimas cidadĂŁos russos em vários paĂses ou de atitudes risĂveis, como a do restaurante brasileiro que retirou o estrogonofe da sua ementa habitual, Ă censura aos mĂdias do referido paĂs, ao boicote a desportistas e artistas russos e atĂ© ao cancelamento de seculares manifestações da rica e reconhecida cultura do paĂs.
Se o assĂ©dio indiscriminado dos cidadĂŁos russos Ă©, alĂ©m de preconceito deslavado, um sinal de burrice, pois muitos deles, se nĂŁo mesmo a maioria, sĂŁo contrários Ă polĂtica de Vladimir Putin, o boicote Ă imprensa russa, impedindo o mundo de ver o outro lado da guerra, põe a nu, como se isso fosse necessário, a hipocrisia do discurso ocidental acerca da liberdade de imprensa. Como em várias outras ocasiões no passado, o Ocidente expõe agora a sua prĂłpria hipocrisia sem qualquer pejo, confiado no peso avassalador da sua formidável barragem mediática, colocada em ação desde antes da invasĂŁo russa.
Em relação, particularmente, Ă s notĂcias que temos tido nas Ăşltimas semanas sobre casos de russofobia cultural, porei de parte, esclareço, decisões como afastar o representante russo do Festival da EurovisĂŁo, pois, tendo essas realizações um cunho institucional, tal decisĂŁo contĂ©m alguma racionalidade, concorde-se ou nĂŁo com ela. TambĂ©m nĂŁo comentarei o afastamento por motu proprio de diversos artistas, em especial estrangeiros, que trabalhavam em companhias russas, por se tratar de decisões pessoais. Ou as medidas corporativas tomadas por empresas, igualmente estrangeiras, de deixar de trabalhar ou de ter relações comerciais com a RĂşssia (como a Globo, que suspendeu o fornecimento de novelas ao referido paĂs).
Mas o que dizer, por exemplo, do afastamento do maestro Valery Gergiev pela filarmónica de Munique e da soprano Anna Netrebko pela companhia de ópera de Nova Iorque? Ou, mais absurdo ainda, o cancelamento de concertos de Tchaikovsky pela filarmónica de Zagreb? Ou, igualmente absurda, a decisão da Universidade de Milão de cancelar o estudo das obras de Dostoiévski?
Algumas dessas decisões, como o afastamento de artistas russos, têm sido tomadas, alegadamente, porque os mesmos têm evitado tomar posições públicas acerca da invasão da Ucrânia pela Rússia. É preciso dizer, desde logo, que essa imposição é anti-democrática, pois, por definição, a democracia dá a todos o direito de se posicionarem ou não (o sublinhado é intencional) sobre todo e qualquer assunto. Mais do que isso, e como afirma o economista americano Taylor Cohen, colunista da prestigiada Bloomberg, muitos daqueles que têm evitado tomar posição pública sobre este assunto fazem-no por medo de retaliação de Putin. Por conseguinte, forçá-los a isso, sob pena de despedimento, não pode ter outro nome senão crime. A propósito, Cohen tem denunciado o novo macartismo que, a pretexto da Ucrânia, está a afiar as garras nos Estados Unidos e, acrescento eu, em todo o eixo ocidental.
AlĂ©m do campo da cultura, o desporto Ă© outra área onde a invasĂŁo da Ucrânia pela RĂşssia está a servir de pretexto para manifestações de irracionalidade de todo o tipo, das quais a mais gritante foi a decisĂŁo de proibir os atletas paralĂmpicos russos de participarem nos Jogos ParalĂmpicos de Inverno.
Perante todos estes casos de assĂ©dio, chantagem e cancelamento de desportistas e artistas russos, a pergunta básica a fazer Ă© se essas atitudes e decisões trarĂŁo a paz para a Ucrânia. Tyler Cohen, por exemplo, pergunta-se: “Quais sĂŁo as provas de que boicotar artistas russos no estrangeiro vai ajudar a Ucrânia?”. O jornalista portuguĂŞs LeonĂdio Ferreira, por outro lado, afirmou que “pensar que se pode cancelar a colossal cultura russa ao mesmo tempo que se apela aos russos para forçar Putin a mudar, ou mudar-se, nĂŁo faz sentido”.
O maestro portuguĂŞs Pedro Amaral, citado por Ferreira no Diário de NotĂcias (Lisboa) de 5 de março de 2022, nĂŁo tem dĂşvidas: “A condenação intransigente da invasĂŁo nĂŁo pode, em nenhum caso, confundir o Povo russo, a sua Arte e a sua Cultura com a insanidade dos seus dirigentes polĂticos”. O mesmo se diga, acrescente-se, do povo, da arte e da cultura de qualquer outro paĂs.
Todas estas manifestações de russofobia, alĂ©m de confirmarem os limites democráticos do Ocidente, trazem Ă tona igualmente a sua hipocrisia e a sua polĂtica de dois pesos e duas medidas no terreno que constitui o principal tĂłpico deste artigo: as relações entre cultura e desporto e polĂtica.
Quantas vezes nos tĂŞm atirado Ă cara os arautos do pensamento liberal ocidental, em especial os colocados Ă direita no espetro polĂtico-ideolĂłgico, que desporto e cultura nĂŁo tĂŞm nada a ver com polĂtica? Fizeram-no, por exemplo, quando os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos imitaram o gesto dos Panteras Negras nos Jogos OlĂmpicos de 1968 e fazem-no ainda hoje quando, em todo o mundo, desportistas de todas as modalidades se manifestam por qualquer causa; o mesmo acontece sempre que fazemos poesia polĂtica ou escrevemos romances e peças de denĂşncia, pois, segundo os referidos capatazes do cânone artĂstico, a arte polĂtica Ă© “menor”.
A pretexto da Ucrânia, tal narrativa Ă© abandonada sem qualquer explicação. Mas nĂŁo se trata apenas de hipocrisia. A polĂtica de dois pesos e duas medidas em que as classes dominantes do Ocidente sĂŁo useiras e vezeiras tambĂ©m Ă© exibida em toda a sua obscenidade. SĂł para lembrar um exemplo, os EUA invadiram o Vietname e nĂŁo foram banidos das competições desportivas internacionais nem os seus artistas foram cancelados.
Este Ă© o mundo em que vivemos.