Comer a própria língua para que depois ela nasça revigorada, fortalecida, outra. Comer a própria língua para, a seguir, regurgitá-la, ressignificá-la, batizá-la, chamá-la de sua língua. Comer a própria língua, como quem engravida, para depois pari-la. Comer como quem saboreia a comida que está no prato e não aquela que é a palavra virgem em estado de dicionário.
A língua só é nova (língua-nossa, língua-pátria, língua-mátria) quando a pronunciamos em comunhão; de um lado, com a propriedade do intelecto; do outro, com a sabedoria dos sentidos. Só então ela ganha contornos de casa, lugar de memória, de língua-família, sedenta de ambições e de intercomunicações com a herança que já trazemos de outras paragens.
Leio Gabriela Gomes e o seu livro Língua-Mãe, e de pronto sou assediado por uma bagagem que muito pesa no meu coração, que rejubila frente às lembranças. Ouço, por exemplo, numa gravação antiga, as palavras da escritora portuguesa Natália Correia, que na sua defesa do poeta diz: “Ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer”. Vejo, por outro lado, bem claramente o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral, com a representação de uma grande figura humana estilizada com pés enormes sentados no chão. Abaporu, que é um termo de origem tupi-guarani e que significa “homem que come gente” (antropófago). E de uma forma mais sedutora, Caetano Veloso lembra-me de “…sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Tudo me remete à língua, à fome, à sua digestão ou indigestão.
As palavras da escritora brasileira, radicada na cidade do Porto, são mais incisivas, agressivas, violentas, ou mesmo, antropofágicas neste processo de fênix. Uma urgência grita de suas veias, talvez pelo fato de ser mulher (a mulher também come), mãe, poeta, imigrante, mestiça, num mundo que ainda ostenta a sua marca registrada de masculinidade.
Intuo pelas palavras de Gabriela que as diversas línguas, que acumulamos ao longo da vida, enfrentam um processo de implosão, para continuarem existindo como algo mutante, ou — se assim não for — dissolverem-se no seu prazo de validade vencido (língua-morta). Uma língua que é como um vulcão, que acumula sedimentos ao longo das eras, até que não se consiga mais aguentar o vômito, e o interior da terra rebenta, irrompa pela borda frágil do que somos feitos, criando códigos distintos. A língua é tão somente esse exercício que não se esgota.
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