🔓 Futuro ancestral

Claudio Magris, Milan Kundera, Virginia Woolf, Elena Ferrante e Ailton Krenak reunidos em um texto que discute os dilemas do romance contemporâneo
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/04/2023

O romance é concebível sem o mundo moderno? — essa é a questão que nomeia o ensaio do italiano Claudio Magris sobre os paradigmas do romance literário no mundo contemporâneo. A pergunta também ocupa as páginas de A arte do romance, antologia de ensaios e entrevistas do tcheco Milan Kundera: o romance como gênero literário, tal qual o conhecemos no mundo ocidental desde Dom Quixote, estaria fadado à morte?

O ensaio de Claudio Magris encerra o primeiro volume de A cultura do romance, organizada por Franco Moretti, coletânea de mais de mil páginas, divididas em quatro partes, propõem-se a pensar a história do romance como gênero literário através de suas sucessivas crises. Na introdução, Moretti argumenta que o romance combina três perspectivas distintas: 1) o romance como grande acontecimento cultural, “que redefiniu o sentido de realidade, o fluxo do tempo e da existência individual, a linguagem e as emoções e os comportamentos”; 2) o romance como forma: “(…) aliás, formas, no plural, porque na sua longa história encontram-se as criaturas mais surpreendentes, e o alto e o baixo trocam de lugar de bom grado, e os próprios limites do universo literário se tornam incertos”; 3) o romance como o que chama de “geografia planetária”: “Às vezes, ocorre-nos pensar em Babel; mas é exatamente essa flexibilidade que fez do romance a primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”.

Mas, para Magris, uma vez que o mundo moderno ou “a modernidade com m maiúsculo acabou ou está acabando, em uma guinada histórica de enormes dimensões, que só pode ser comparada ao fim da Antiguidade”, também o romance como gênero literário estaria morrendo.

A produção romanesca média parece florescer viçosa, ao menos no plano quantitativo, na absoluta ignorância do mundo e de sua transformação, no tranquilo desconhecimento da realidade; a maior parte dos romances assemelha-se a aparelhos antiquados e obsoletos. Nesse sentido, o romance médio cada vez mais se assemelha (…) àqueles gêneros literários envelhecidos e antiquados que o grande romance moderno, ao irromper violentamente em cena, havia varrido.

Magris lembra também que o romance é impensável sem a nova função do dinheiro e a ascensão da burguesia. Menciona o fenômeno dos best-sellers no século 18, como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. O romance seria, portanto, um paradoxo, uma “lança de Aquiles que fere e cura”, no sentido de que, a um só tempo, representa a crítica ao mundo moderno, como também o assimila e se torna parte dele.

Segundo Magris, somente um romance que assumisse os dilemas atuais poderia alcançar o sentido da realidade e de sua dissolução. Conclui observando que, atualmente, vivemos em um “supermercado político-social” onde os romances, que seriam apenas remakes da tradição, aparecem como produtos secundários, porém vendáveis. “Talvez o romance termine em uma auto paródia involuntária”, mas isso, diz ele, seria uma outra história.

De outro lado, temos Virginia Woolf, para quem o romance é “a mais maleável de todas as formas”. Pensar o romance como um gênero literário que se relaciona mais com um espírito do que com essa ou aquela forma parece um caminho interessante. Mas não podemos dizer que os argumentos de Magris não são razoáveis: se o romance é uma forma artística intrinsecamente vinculada a um período histórico, com o processo de derrocada desse período, essa forma poderia de fato ter se tornado insuficiente para dialogar com esse novo momento. As crises do romance podem ser pensadas também como um movimento dialético entre mundo externo e mundo interno, literatura e história como um processo dinâmico. Para Hegel, a percepção da realidade e as técnicas de representação vão se modificando conforme o entorno se transforma. A questão que nos assombra é: será que o romance é uma forma elástica o bastante para seguir como tal no mundo de hoje?

Em A arte do romance, Milan Kundera reflete sobre a evolução do romance e de seus aspectos centrais desde Miguel de Cervantes, autor daquele que é considerado a pedra angular ocidental do gênero pela maior parte dos historiadores do romance. Embora Kundera concorde que tudo que é humano traga em seu nascimento também o germe de seu fim, argumenta que o romance não é apenas uma representação do mundo moderno, mas também a sua gênese, já que, a partir dele, passamos a lidar com outra realidade: “em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem”. Para ele, o romance tem como única certeza a sabedoria da incerteza.

“O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: ‘As coisas são mais complicadas do que você pensa’. Essa é a eterna verdade do romance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das respostas simples e rápidas que precedem a questão e a excluem”, escreve.

O romance poderia ser pensado como o espírito de continuidade, uma vez que cada obra é resposta às obras que a precederam; cada obra contém toda a experiência anterior do romance, ainda que seja para romper com ela. No entanto, há aqui um paradoxo observado por Kundera:

O espírito de nosso tempo está fixado sobre a atualidade, que é tão expansiva, tão ampla, que expulsa o passado de nosso horizonte e reduz o tempo ao único segundo presente. Incluído nesse sistema, o romance não é mais obra (coisa destinada a durar, a unir o passado ao futuro), mas acontecimento de atualidade como outros acontecimentos; um gesto sem amanhã. 

Para o escritor, o romance não pode “viver em paz com o espírito de nosso tempo: se ainda quer continuar a descobrir o que não foi descoberto, se ainda quer ‘progredir’ como romance, ele só pode fazê-lo contra o progresso do mundo”. Poderíamos fazer uma analogia com algo que o escritor indígena Ailton Krenak, um dos pensadores brasileiros mais importantes da atualidade, defende desde o título em seu livro mais recente: Futuro ancestral.

Gosto bastante desse pensamento, mas acho importante acrescentar uma observação que a italiana Elena Ferrante faz em uma entrevista, ao ter sua obra comparada à de Alexandre Dumas, grande autor francês do século 19:

Posso escolher reutilizar alguns dos potentes dispositivos da literatura popular, mas se faço isso, estou em uma época completamente diferente, gostando ou não, da que essa literatura teve seu auge. O que quero dizer com algum pesar é que de modo algum posso ser Dumas. Pertencer à grande tradição dos romances populares não significa mais, para o bem ou para o mal, criar esse estilo de narrativa, mas sim utilizá-la, distorcê-la, violar suas regras, frustrar suas expectativas, tudo a serviço de contar uma história do nosso tempo. (…) Nós podemos apagar a fronteira entre as diferentes experiências literárias e utilizá-las simultaneamente para dar forma a nosso momento histórico.

De um lado, temos a importância de experimentar novas formas estéticas que dialoguem com as características do mundo atual — com a velocidade, a efemeridade dos vínculos, os fragmentos de experiência —; de outro, a constatação de que, para manter o espírito do romance, talvez a grande subversão do nosso tempo seja resistir à celeridade e à fragmentação.

Faço aqui uma mistura de citações de autores tão diferentes para tentar demonstrar a minha aposta de que existem caminhos distintos que apontam para a longevidade do romance também como possibilidade literária e não apenas como mercadoria. Apesar disso, é importante reconhecer: é uma raridade quando acontece e, por isso mesmo, um tesouro.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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