🔓 Força atemporal

Nova edição de "Um defeito de cor", de Ana Maria Gonçalves, confirma a relevância do romance para entender processo histórico de formação do Brasil
Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor”
01/04/2023

Não é exagero considerar Ana Maria Gonçalves uma das mais importantes vozes femininas da literatura brasileira contemporânea. Nascida em Ibiá, interior de Minas Gerais, em 1970, é publicitária de formação e teve seu início como ficcionista por meio de uma obra independente, custeada por ela própria, intitulada Ao lado e à margem do que sentes por mim. Porém, foi com o romance Um defeito de cor, publicado em 2006, que rapidamente a autora ganhou notoriedade e respeito da crítica ao reconstruir em tom memorialístico a história de Kehinde, uma mulher afrodescendente, da infância à vida adulta, marcada pelo regime da escravidão negra que perdurou durante três séculos no Brasil.

Aliada a uma intensa pesquisa documental, o romance desbrava os interiores da senzala e os conflitos existenciais de toda uma subjetividade de personagens inesquecíveis ali encontradas que mimetizam o amálgama de vozes silenciadas pelo sistema patriarcal consonante à hegemonia branca vigente. Não à toa que, dezessete anos depois de sua publicação, o romance retorna às livrarias em edição comemorativa, mostrando-se mais atual do que nunca, visto que, mesmo com os avanços culturais e tecnológicos ocorridos na sociedade brasileira, o país continua experienciando o fatídico drama do racismo estrutural e da desigualdade de classe.

Em entrevista ao Rascunho, Ana Maria Gonçalves comenta sobre o processo de elaboração de sua mais aclamada obra, a questão da representatividade na literatura, as mudanças do mercado editorial, além de trazer informações sobre o seu próximo projeto ficcional.

• Um defeito de cor é um dos grandes clássicos da literatura brasileira contemporânea, além de traçar um panorama significativo sobre a identidade de homens e mulheres afro-brasileiros. Como foi o processo de construção do livro?
O processo de elaboração da história que está em Um defeito de cor começou no momento em que li num livro de Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos: Guia de ruas e mistérios, sobre uma rebelião na Bahia, ocorrida em Salvador, em 1835, chamada Revolta dos Malês, que foi uma rebelião de escravos muçulmanos que queria fundar o que depois os historiadores começaram a chamar de Califado Baiano, que era fazer a Bahia independente do Brasil, governada por eles. Eu nunca tinha ouvido falar dessa rebelião escrava — extremamente importante e que mudou os rumos do processo escravagista no Brasil. Comecei a querer contar aquela história, e seria até um jeito de contar aquela história para mim. Sempre digo que Um defeito de cor é um livro que gostaria de ter lido. Então, fui atrás dessa história, que acabou virando o capítulo 7 de Um defeito de cor. Foi no processo de pesquisa que realmente entendi a dimensão da escravidão no Brasil. O livro cresceu em volta da rebelião malê conforme fui vendo novos personagens, estudando coisas que eu não sabia e gostaria de colocar ali. Foi um processo de cinco anos, os dois primeiros foram só pesquisa, eu só li, não escrevi absolutamente nada a não ser um roteiro da história, do que se tornou a história depois disso. Depois, mais um ano de escrita e mais dois de reescrita, período em que reescrevi o romance dezenove vezes. Durante o processo de pesquisa, achei que ia contar cem anos de história. Lembro de ter pegado cem folhas de papel sulfite, grudei todas na parede de casa, uma para cada ano, e dividi as folhas em três colunas. Na primeira coluna, conforme ia pesquisando e lendo, escrevia coisas que poderiam acontecer na vida da minha personagem principal, a Kehinde. Na segunda coluna, coisas que aconteciam na vida de pessoas que conviviam com ela e poderiam afetar a vida dela, e na terceira coluna, coisas que aconteciam na cidade, no estado, no país ou no mundo, que poderiam afetar a história da personagem principal. Ao fim de dois anos do processo de pesquisa, o que eu tinha era isso. Passei a limpo para o computador e a partir dali fui costurando a história. Acredito que esse pré-roteiro foi mudando muito na escrita, porque uma coisinha que você muda na história é um efeito cascata que vai fazer com que ela tome um novo rumo. A pesquisa foi um guia, um processo que me deu um entendimento do que queria dizer, e a partir dali fui deixando a história seguir seu fluxo.

• De que maneira as pesquisas contribuíram para os caminhos que o enredo acabou tomando? Além disso, como manteve o equilíbrio entre a escrita de ficção e a pesquisa histórica?
Fiz questão de colocar uma bibliografia no fim do romance, apesar de não ser muito usual, porque sou uma escritora que se apoia muito no processo de pesquisa. Eu gosto. Talvez seja uma das etapas de escrita de um livro, não só de um livro, mas de qualquer processo criativo, de que eu mais goste. É a partir dali que acho que as pecinhas que formam a história que está na minha cabeça se encaixam umas nas outras, criando trajetórias que sejam verossímeis ao leitor. E esse não é um processo pensado, é um processo muito intuitivo, ou seja, pedaços de ficção ou de realidade vão se misturando para criar uma determinada história, no sentido que são necessários para aquela história, não tem uma forma, vou colocar mais daqui ou mais dali, e eu acho que nem saberia fazê-lo desta maneira.

• Luísa Mahin, mãe do poeta abolicionista Luís Gama, foi uma figura crucial para a construção da protagonista Kehinde. Como foi chegar à respectiva personagem histórica?
Não existe nenhuma documentação oficial sobre Luísa Mahin. Então parti de um poema e uma carta autobiográfica em que Luís Gama fala de sua mãe. Aí, fui pesquisando histórias de outras mulheres que viveram na mesma época e nos mesmos lugares que essa personagem que eu construí a partir das referências biográficas do Luís Gama para a possível história da Luísa Mahin.

• Escrever um romance de quase mil páginas não causou nenhum tipo de insegurança quanto ao retorno do público ou de alguma editora publicá-lo, já que o número de páginas, em alguns casos, pode atrapalhar a ascensão do livro?
Escrevi o livro que gostaria de ter lido sobre o assunto, sem deixar de fora assuntos que considerei interessantes ou importantes. Não dá para se pensar uma história em relação ao limite de páginas, até porque é impossível controlar a recepção do livro. O que me preocupa é sempre contar a melhor história que consigo contar, independentemente do tamanho.

• Ao lado e à margem do que sentes por mim foi publicado de forma independente. Como se deu sua estreia e quais eram as suas pretensões?
Digo que é um livro que eu tinha de escrever, durante o processo de pesquisa do Um defeito de cor, para aplacar minha ansiedade de escrever um livro e deixar que o Um defeito… levasse o tempo que tivesse de levar.

• Existe a possibilidade de Ao lado e à margem do que sentes por mim ser reeditado?
Não. É um livro apressado, do qual sempre digo que nem me orgulho nem me envergonho. Considero-o apenas mediano, e por isso não pretendo republicá-lo.

• O interesse pela literatura surge quando e por quê?
Meu interesse pela literatura surgiu na infância. Tive a sorte de ser filha de uma mãe leitora. Então desde muito cedo convivi com muitos livros na minha casa. De uma maneira muito orgânica, a literatura foi incluída no meu dia a dia, porque em qualquer momento de folga eu via minha mãe lendo e gostando de ler e se divertindo com a leitura. Acho que isso passou para mim também.

• Como é chegar até aqui, com essa nova edição de Um defeito de cor, acompanhando o Brasil em sua atual conjuntura econômica, política e social? É possível pensar que estamos no caminho da mudança mesmo após termos vivenciado tamanho retrocesso nos últimos anos?
Acho que Um defeito de cor pode ajudar a compreender o processo histórico de formação do Brasil. Então, fico muito feliz que essa nova edição traga um novo fôlego para o livro, apresente-o a quem ainda não o tinha no radar. E que a partir daí a gente realmente entenda quem a gente foi para poder definir quem a gente quer ser. Acho que esse é o processo de mudança. E, sim, envolve idas e vindas, é assim que se faz a história.

• Qual é a sua opinião sobre a atual produção da literatura brasileira que representa novos lugares de fala e dá protagonismo a subjetividades que, durante muito tempo, foram silenciadas por uma sociedade de herança escravagista, hegemônica e patriarcal?
Sim, o mercado literário brasileiro é um mercado extremamente seletivo, principalmente quando a gente está falando da publicação de romances. A maioria dos romances publicados ultimamente no Brasil foi escrita por homens brancos do sul e sudeste do país. Nomes como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Eliane Alves Cruz, Geovani Martins, Conceição Evaristo, por exemplo, já vêm de uma trajetória bastante consistente, anterior a Um defeito de cor. O que não havia era uma abertura ou interesse do mercado na divulgação dessas obras. Acredito que de algum tempo pra cá, o mercado percebeu que há demanda, há interesse e há necessidade de publicar cada vez mais autores, e aí eu não falo apenas de autores negros e negras, mas indígenas ou LGBTQIA+ que estão surgindo, contando uma história que é diferente das histórias das ficções, das narrativas que sempre nos foram contadas a partir de um único ponto de vista. É isso que acho interessante no mercado editorial agora.

• A senhora acredita que a literatura ainda pode cumprir esse papel, que muitos falam, de mudança social diante da subjetividade individual e coletiva de um país?
Acredito que a literatura pode muita coisa, mas não pode tudo. E ela também não tem a necessidade de ter uma finalidade específica, seja de transformação social, construção de subjetividades ou coletividades. Pode ter só papel de entretenimento também. Acredito que vai muito da possibilidade e da necessidade de cada autor ou autora. Eu me considero um ser político no mundo, então é óbvio que a literatura que faço vai refletir isso, mas não necessariamente que ela tenha obrigação de ser um veículo de transformação social. Ela pode ser um veículo de entretenimento e de beleza, duas coisas extremamente necessárias também no mundo de hoje.

• O número significativo de mulheres brancas e negras escrevendo em nosso país diz alguma coisa para a senhora quanto ao mercado editorial brasileiro dos últimos dez anos?
Gostaria de ter números, de ter fontes mais específicas para poder responder a essa pergunta, se houve realmente um aumento significativo nesses últimos dez anos. Confesso que não tenho acompanhado de perto os dados, mas tenho visto em termos de visibilidade. Acredito que os principais prêmios literários dos últimos anos foram ganhos por mulheres, mas o que a gente pode deduzir aí é um dado qualitativo, não necessariamente quantitativo.

• É possível superar todas as mazelas que o Brasil enfrenta há mais de cinco séculos e que atormentam substancialmente a vida de milhões de brasileiros?
É uma pergunta bem abrangente que eu não saberia responder. A esperança e o otimismo são necessários para minha saúde psicológica e física, até de existência no mundo agora, e acredito que há sim possibilidade de se superar tudo, mas não sei em quanto tempo, porque não sei qual é a vontade de cada geração em realmente superar um determinado problema que esteja no Brasil há séculos ou que tenha surgido no últimos anos, mesmo porque os problemas vão mudando de acordo com o tempo, de acordo com as ações do povo que está habitando o mundo naquele determinado momento.

• Podemos aguardar um novo livro seu?
Sim, tenho um livro novo que terminei há uns três anos, e que está na gaveta decantando ou descansando um pouco antes que eu volte a trabalhar nele, um processo de que gosto muito. Eu falo sempre que sou uma reescritora. Gosto do processo de ir em busca da história que quero contar, usando a frase eu acho que é a frase que cabe ali. O livro é uma ficção científica policial muito diferente de Um defeito de cor. Mas não tenho pressa. Vai chegar o momento dessa história ser contada.

Um defeito de cor
Ana Maria Gonçalves
Record
966 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

Rascunho