Que cidades sou hoje? O mesmo será dizer que rios ou mares navegarei nesta cidade que se me apresenta assim que abro os olhos. Será a mesma cidade com a qual deitei-me na noite anterior ou tudo ter-se-á mudado numa qualquer metamorfose enquanto dormia? Que pessoa serei hoje quando acordar? Que estados de alma ou desnortes me esperarão pela manhã?
Cidades que nos habitam há muitas, as da escritora Filipa Leal são lÃquidas e talvez — apenas talvez — não sejam tão diferentes das nossas… talvez menos lÃrica, pois estas só são possÃveis aos que estão próximos dos deuses, e com eles mantêm um diálogo intermitente. A poeta Filipa é uma destas privilegiadas, falÃvel como outro qualquer ser de carne e osso, mas que tem este à -vontade, esta particularidade, de levitar ou descer aos infernos do mundo da poesia (os deuses por vezes também residem nas trevas).
Diz-me a Filipa Leal no seu lirismo: As pessoas pescavam dentro de casa (…) Era o medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. Digo que o excerto deste poema maior, denominado A cidade lÃquida, escrito em 2006, nunca foi tão assertivo sobre as cidades e suas gentes nestes tempos de pandemia, mas já o era em outros tempos, e voltamos ao inÃcio, como a serpente Oroboros: que cidades sou hoje, neste mundo estranho, e de novas rotinas? Sou esta cidade lÃquida que me escorre pelas mãos e que não a consigo agarrar ou a cidade lÃquida como um mar: mar-de-gente, mar-sem-gente, mar-de-carros, mar-sem-carros, mar-de-casas, mar-sem-casas, mar-de-livros, mar-sem-livros e, por isso, sempre no limite quer do afogamento, quer do alumbramento?
Diz-me Filipa que as cidades deveriam ser movidas a cavalos de verdade e não a cavalos-cilindrados, cavalos que falam a linguagem das máquinas. Diz-me que não conseguiria viver no campo, apesar de desejar cavalos de verdade nas cidades. Diz-me que a sua cidade-famÃlia é o Porto; diz-me que a sua cidade atual tem o nome de alguém por quem se apaixonou, e, portanto, a sua cidade-paixão é Lisboa; diz-me que a sua cidade cosmopolita é Londres, cidade que também não se move a cavalos de verdade; diz-me que não se identifica muito com a cidade de Paris, mas no auge do desconforto ao ser fotografada, para este ensaio, trauteia La vie em rose, em pleno Jardim Botânico de Lisboa, para afugentar fantasmas. O que vejo nesta hora, através da lente, é um quadro impressionista de Claude Monet.
Que cidades sou hoje, que mares ou rios, que lirismos, que verdades?
…..
…..
…..
…..
…..
…..
…..