🔓 Faltas, fissuras, medo e coragem

Uma conversa com Raimundo Neto sobre o corpo como literatura e a ressignificação do mundo a partir das obras de Paul B. Preciado e Judith Butler
Ilustração: Carolina Vigna
01/12/2020

Conversa com Raimundo Neto

1.
Carola: Você me entrevistou duas vezes, e nas duas ocasiões eu me emocionei, e senti que havia na tua leitura uma capacidade rara de ir ao âmago das coisas, uma coragem. Depois, quando li teu livro, reencontrei na tua ficção essa verdade da vida. É tão raro.

Raimundo: Querida, obrigado por me contar sobre isso. Fico bastante emocionado. Você, sua escrita e livros representam muito para mim. Interessante o que você menciona sobre âmago e coragem. Esse livro começou pelo/no medo, revisitações sobre injúrias e seus processos de sujeição que me colocaram durante anos em um lugar muito estreito e apavorante, quando me diziam viado, bicha, baitola, puta, mulherzinha, caminha-e-fala-se-comporta-como-homem, anos e anos. Em casa, nas escolas, depois na universidade. Eu soube muito sobre mim (viado, bicha, baitola, puta, mulherzinha, caminha-e-fala-se-comporta-como-homem) antes de me saber de “fato”; os outros pareciam saber muito mais sobre o que eu era e/ou o que eu me tornava. Durante aqueles anos, o âmago das minhas coisas permaneceu constituído por esse processo. Foi uma travessia repleta de singularidades elaborar que eu precisava ressignificar aquelas injúrias para que a constituição do que eu queria para mim fosse uma reinvenção possível. Por isso os contos e essa ficção de Todo esse amor que inventamos para nós. Penso que há muitas e variadas verdades nessa ficção. Uma dessas verdades é que ainda tenho muito medo do mundo.

Carola: Eu acho que não há contradição entre ter medo e ter coragem, ao contrário. Para se ter coragem é necessário compreender, suportar, sentir profundamente o medo. Quem não tem medo não precisa ter coragem. Sinto que todo livro que me impressiona, que me toca, é sempre uma travessia, um ato (de coragem), sem isso é só uma casca bonita, lugar confortável, técnica bem realizada. Quando eu dava oficina de criação literária, costumava dizer para os alunos que a gente escreve a partir da falta (ou deveria), que é necessário suportar a falta para então aproximar-se dela, contorná-la com palavras, e também, oferecer-lhe outros significados. Acho muito bonito esse movimento que você descreve, ressignificar as injúrias (marcas no corpo e no espírito), porque das marcas a gente nunca se livra, apesar da ilusão que muitas pessoas têm de que seria possível apagar o passado, nada se apaga, e o que a gente faz é carregar da melhor maneira possível as marcas que (também) fazem de nós quem somos.

Raimundo: Concordo com você, sobre medo e coragem em diálogo, longe de polos binários. Eu tenho refletido muito a esse respeito nos últimos anos, o que me levou também a pensar sobre as minhas faltas e rachaduras. De alguma forma é isso que também somos todos: faltas, fissuras, medo e coragem. E muitos afetos.

2.
Carola: Me interessa muito a questão “corpo e literatura”, em geral nós, escritores, vivemos numa espécie de negação do corpo, como se só existisse a mente, como se não se tratasse de uma coisa só. Costumo assistir às tuas performances de pole dance no Instagram. A tua beleza. E fico pensando nas conexões que essas duas artes — a literatura e a dança — podem ter pra você, em como elas se entrelaçam. O que significa criar a partir do corpo?

Raimundo: Adoro falar/escrever sobre isso. Que ótimo que você tocou nessa parte do corpo, rs. Concordo com você. Pensando sobre alguns discursos de alguns escritores a respeito do corpo, me parece que há mesmo essa negação da corporalidade atrelada a um suposto binarismo: ou é corpo ou é mente. Tenho pensado, nos últimos anos, o corpo como subjetividade e vida psíquica e todos os muitos significados que são construídos e elaborados num movimento muito dinâmico de estarmos inseridos em contexto específicos (casa, família, casamento, filiação, comunidade, cidade, país); refiro-me ao corpo-mente indissociados, conectados, em fluxo. As filosofias e reflexões de Judith Butler contribuíram muito para as minhas reformulações sobre o corpo, especialmente em seus estudos sobre a precariedade/vidas precárias; ela diz, inclusive, que “corpos, na verdade, carregam discursos como parte do seu próprio sangue”. Sobre o pole dance: obrigado. A dança-pole faz parte da minha travessia ao pensar essa unidade potente e complexa que é o corpo-fluxo. Tenho 38 anos, e comecei a dançar em maio de 2019. Não sou dançarino, mas tenho a dança como uma possibilidade também para a/de escrita. Embora desajeitado, sempre que sinto os movimentos entendo (não necessariamente aspectos racionais e conscientes) que há muito a ser dito pelo corpo. Reconheço de uma forma outra. Como se eu, quando danço, também reescrevesse outros significados sobre o que sou. E isso também fazer parte dos processos de ressignificação das injúrias que me constituíram. Eu amava dançar na infância e adolescência, e isso era tido como “coisa de ‘viado’, coisa de ‘mulherzinha’”. Então me afastei muito da dança que eu queria. Hoje, passo horas e horas acompanhando dançarines e grupos de dança pelo mundo (assim como outras artes) e vejo em cada um de seus corpos um livro singular. Tenho pensado o pole dance e as dançarines de pole com quem convivo como possibilidades subversivas para o corpo e também para a escrita.

Carola: O corpo é também uma forma de escrita, e por que não, de literatura. O corpo como forma de subverter a narrativa. Penso muito no corpo como um espaço que escapa (ou pode escapar) aos dogmas da cultura, e também da própria subjetividade. O corpo que deseja, o corpo que se rebela, o corpo que sabe, o corpo que fala à nossa revelia. Talvez por isso tenhamos (enquanto sociedade) tanto medo dele e tentemos por meio de todo tipo de violência, controlar, silenciar essa fala.

Raimundo: Que bonito! E a escrita é outro corpo, indomável, que se diz para além do que somos, muito além do que achamos que sabemos e controlamos sobre/em nós.

3.
Carola: Todo esse amor que inventamos para nós ganhou o Prêmio Paraná de Literatura em 2018. Entre outras possibilidades, o título se refere a um amor não escrito/inscrito na sociedade, um amor em silêncio, sem modelos para se guiar, e que por isso precisa ser inventado. Há uma tristeza tão grande nesse silenciamento e ao mesmo tempo uma liberdade, uma potência criativa e revolucionária. E há também o perigo que sempre ronda, lembro das palavras da Clarice em A paixão segundo G.H.: “Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?”

Raimundo: As personagens do livro são reinvenções que escapam das lógicas normativas. Tudo o que disseram sobre elas não era possível para o que pretendiam para si, pois as inseriam apenas nos enquadramentos da abjeção e da morte. Quando comecei a escrever, a partir de fragmentos de memórias minhas e do convívio com pessoas “dissidentes”, da minha infância e adolescência, imaginei como poderia ser um amor que subverte, um casa-família que escapa da origem e se refaz, cada vez mais viva. Eu entendia que essa ficção poderia movimentar-se como um questionamento dos modos dominantes pelos quais todos os aparelhamentos institucionais subjugam e produzem a ideia dos corpos tidos como “anormais” e “abjetos”; talvez aí esteja a potência. Interessante você falar sobre potência criativa e revolução, porque tenho refletido profundamente sobre isso, e graças ao [Paul B.] Preciado, tenho encontrado muitas travessias que se reinventam. Os perigos que rondam esse não-saber são constituintes das invencionices e das travessias. Em uma de suas crônicas (Um apartamento em Urano), Preciado nomeia a travessia como “o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho“ e que isso não é uma fraqueza, é uma potência. Viver incertezas, criar e imaginar futuros ainda é movimentar as liberdades.

Carola: Sim, o lugar da incerteza. E me vem à mente o conceito deleuziano de devir, que pra mim faz todo o sentido: “No devir não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há história. Trata-se, antes, de involuir; não é nem regredir, nem progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se cada vez mais deserto, e, assim, mais povoado.”

Raimundo: Isso, a incerteza. Faz muito sentido. Tenho procurado mais Deleuze neste ano, e entendido esse devir como travessia, percurso que não se sabe o ponto de chegada; são entrelaçamentos com tudo o que temos conversado aqui.

4.
Carola: Poderia a literatura criar outras formas de amar?

Raimundo: É possível, sim. Criar outras formas de amar, outras representações sobre amar e se relacionar, e todas as complexidades e paradoxos envolvidos nisso. Outro dia, estive numa mesa-palestra online, em um evento organizado por estudantes do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e refleti sobre isso, quando eu disse que penso a Literatura como uma possibilidade para compartilharmos experiências humanas e inventar mundos, na perspectiva de que contar narrativas sobre corpos e identidades divergentes e diferentes do que espera a Norma, e contar suas casas, afetos, sexualidades e identidade-travessia é também incorporar resistências e inventar novas moradas, assumir vulnerabilidades para identificar modos de resistir, e seguir inventando o amor, a casa e o mundo. Vou novamente pelos caminhos da vida com Preciado, que, no seu livro de crônicas, aponta algumas compreensões sobre a escrita como uma “tecnologia da subjetividade” e “prática performativa de produção de vida”, que tem me feito pensar a Literatura e o discurso literário como uma potência capaz de deslocar “códigos visuais que serviram historicamente para designar o normal ou o abjeto”.

Carola: Outro dia, conversando com uma amiga, falávamos da necessidade de ressignificar a palavra amor, afastar-se desse amor que nos é imposto, esse amor romântico-burguês, filho do capitalismo, e caminhar em direção a algo ainda desconhecido, que a gente vai reinventando na medida em que ama. Que é também uma reinvenção do corpo. Por outro lado, crescemos com essa ideia burguesa de amor tão internalizada (através dos discursos vigentes) e agora precisamos de um exercício diário de ressignificação não só das sexualidades, mas também das pequenas coisas do cotidiano, pequenos atos. Nesse sentido, ao criar na ficção outras formas de amar, de se relacionar, outras formas de erotismo, a literatura permite vir à tona (enquanto sociedade) o que ainda não sabemos que sabemos. O que sempre soubemos.

Raimundo: Criar na ficção outras formas de amar… é isso. Acho que não consigo mais atender as expectativas do que me dizem sobre o amor nos paradigmas antigos, e que tanto se renovam diariamente, esse “filho do capitalismo”, como você disse. Quero ter outros nomes para “o que amar quer dizer” (referência ao livro de Mathieu Lindon), como uma revolução, e outros nomes para cada corpo, livro, gênero, sexualidade, ficção, família. Quando escrevi Todo esse amor…, já pensava nas reinvenções dessas ideias e suas profundidades, mas principalmente a respeito do paradigma romântico-burguês.

5.
Carola: Tem uma frase no teu livro que eu amo (aliás, o livro todo é lindo): “E a criança nasceu nos olhos abertos da mulher que sonhava”. Me lembra a frase de Shakespeare em A tempestade: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos”. Será possível sonhar uma maternidade, a palavra feita carne… Sonhar algo outro. E me vêm à mente as palavras do xamã Davi Kopenawa: “Os brancos só sonham com eles mesmos”. Tem um livro da Suely Rolnik que foi muito importante pra mim, ainda é, Esferas da insurreição, entre as várias sugestões que ela faz (dez sugestões para descolonizar o inconsciente), duas me chamam especialmente a atenção: “Não denegar a fragilidade/ Não abrir mão do desejo em sua ética de afirmação da vida”. Sinto que escrevemos a partir disso, dessa fragilidade, dessa falta, e vem da coragem, da afirmação do desejo, o milagre da palavra.

Raimundo: Muito obrigado, querida. Acendem alegrias aqui quando leio que você leu meu livro. Gosto muito desse livro da Rolnik. Ainda não terminei. A leitura desse livro é um processo longo e necessário. Penso que esse foi outro livro que mexeu com as noções que me deram sobre Literatura, escrita, e Psicologias/Psicanálises. Suely propõe (pelo menos essa foi a minha interpretação de trechos do livro) que há mecanismos de produção de subjetividade e que o nosso desafio está em superar a dicotomia entre, por exemplo, macro e micropolítica, o que faz muito sentido quando penso as representações sobre corpos abjetos e dissidências (que mencionei antes) também na Literatura. O cotidiano, e as práticas discursivas desse, estão intensamente repletas de práticas dominantes que subjugam, mas o tecido, a malha desse cotidiano é muito densa, e cheia de nós, e estamos, nós, todas enredadas; somos também inconscientes produzidos e retroalimentados nessas e por essas práticas. Como escreve Suelly: “É preciso antes de mais nada refinar nosso diagnóstico do regime de inconsciente hegemônico e seus efeitos tóxicos na existência individual e coletiva, desde uma perspectiva ética”. Isso seria um passo nesse investimento complexo que é descolonizar o inconsciente e as práticas cotidianas, as “ações micro” que passam “despercebidas”, que aparentemente são casuais, e que produzem as “ações macro”, as políticas todas. Entendo que para falar inclusive de desejo precisamos contar e ouvir sobre essas práticas cotidianas, muitas vezes individualista (“de uma subjetividade reduzida ao sujeito”) que não são em nada banais, porque produzem a realidade e também violências e apagamentos. A escrita é um dos muitos caminhos para pensar tais mecanismos e cotidiano; a escrita, a fala, outros discursos. E falar de desejo é falar também de falta e de fragilidades/vulnerabilidades, não para permanecer apenas repetidos nisso, mas para criar possibilidades de ressignificá-las; investigar talvez aquelas práticas cotidianas e suas malhas, desfiá-las para fora e compor outros sentidos.

Carola: Não por acaso quem escreveu o prólogo desse livro foi Paul B. Preciado, um texto lindo, aliás. Destaco aqui um dos meus trechos preferidos: “A revolução não se reduz a uma apropriação dos meios de produção, mas inclui e baseia-se em uma reapropriação dos meios de reprodução — reapropriação, portanto, do ‘saber-do-corpo’, da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo”. Reapropriar-se do próprio desejo (que é sempre incógnita). Gosto tanto do livro da Suely Rolnik porque ela, ao analisar os acontecimentos políticos dos últimos anos no Brasil, chama a atenção para o fato de que nossos desejos são engendrados pelo próprio sistema capitalista, que tudo atravessa, inclusive nossa subjetividade. Nesse sentido, a descolonização do inconsciente é uma tarefa árdua e que nunca termina.

Raimundo: Acho esse livro muito necessário. Muitas das peças expostas por ela sobre esses acontecimentos políticos, contribuíram muito para que eu tentasse elaborar alguns aspectos, até adoecidos em mim, a respeito das últimas eleições, e também sobre o sistema entranhado em nós.

6.
Carola: Ano passado, aqui na Universidade de Colônia, dei um curso sobre feminismos e literatura. Um texto que marcou foi Manifesto contrassexual, de Paul Preciado. Talvez pela afirmação, radical e libertária: “(…) a contrassexualidade aponta para a substituição desse contrato social que denominamos Natureza por um contrato contrassexual. No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por conseguinte, renunciam não só a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes”. E eu sempre volto à frase que se repete algumas vezes em Com armas sonolentas e que é na verdade uma citação que aparece no filme Medeia, de Pasolini: “Nada é natural na natureza”.

Raimundo: Paul B. Preciado é uma das minhas principais e importantes referências, assim como Judith Butler. São duas referências para o que penso sobre estudos queer, por questionarem, dentre outras muitas reflexões sobre a vida e as normas, essas naturalizações (e biologizações) e essencializações do desejo, corpo, família, gênero, sexualidade, identidade. O manifesto contrassexual foi o começo de muitas revoluções em mim ao pensar sobre as máquinas institucionais, suas engrenagens e tecnologias produtoras seculares e cotidianas de normatividades; ao pensar a respeito dessas tecnologias do sexo e gênero existindo como parte de uma biopolítica muito mais ampla; os muitos aparatos institucionais de controle e repressão (as formas institucionacionalizadas e as muitas informais) produzem e reproduzem as noções naturalizantes e essencialistas sobre tudo que é sujeito e corpo, empurrando para o lugar da abjeção e da anormilidade toda vivência que não se adequa à norma e/ou que não entendido/lido como normal. Não há uma natureza do corpo, pois esse é efeito linguístico-discursivo, cultural e só acontece na materialidade do corpo (aqui Preciado pensa Butler), é tanto construído quanto é orgânico e “foge das dicotomias metafísicas entre o corpo e a alma, a forma e a matéria”. Consigo pensar Com armas sonolentas como algo que movimenta ainda mais as provocações do Preciado em mim, quando reflito sobre outras possibilidades para femininos e também as dissidências ininteligíveis (às vezes inclassificáveis) para as normatividades naturalizantes.

Carola: Toda a lógica capitalista está baseada nesse pensamento binário “homem-natureza”, nesse sentido, nada mais revolucionário do que a literatura com sua ambiguidade: a metáfora, a linguagem poética que se desdobra em incessantes significados, não-excludentes e contraditórios.

7.
Carola: E falando em Pasolini, entre as coisas que deixei em São Paulo, sinto falta do livro de poemas editado pela finada Cosac Naify. Pasolini estranhamente tão atual.

Uma desesperada vitalidade 

Quanto ao futuro, escuta:
Seus filhos fascistas
Velejarão
Para os mundos da Nova Pré-História.
Eu estarei lá,
Como aquele que
Espera
Às margens do mar
No qual recomeça a vida.
Só, ou quase, no velho litoral
Entre ruínas de antigas civilizações,
Ravena
Óstia ou Bombaim — é igual —
Com Deuses que se descascam, problemas velhos
— como a luta de classe —
Que se dissolvem…
Como um guerrilheiro
Morto antes do maio de ‘45,
Começarei aos poucos a me decompor,
E na luz dilacerante daquele mar,
Poeta e cidadão esquecido.
(Tradução: Franco Maria Jasiello)

Raimundo: Pasolini é muito atual. Por falar em estranhamento atual, isso me remeteu ao… adivinhe? Preciado, e a mais um trecho do livro Um apartamento em Urano — crônicas da travessia: “Precisamos inventar novas metodologias de produção do conhecimento e uma nova imaginação política capaz de confrontar a lógica da guerra, a razão heterocolonial e a hegemonia do mercado como lugar de produção do valor e da verdade. Não estamos falando simplesmente de uma mudança de regime institucional, de um deslocamento das elites políticas. Falamos da transformação micropolítica dos domínios moleculares da sensibilidade, da inteligência, do desejo. Trata-se de modificar a produção de signos, a sintaxe, a subjetividade, os modos de produzir e reproduzir a vida. (…) Somos os jacobinos negros e bichas, as fanchas vermelhas, os desenganados verdes, somos os trans sem papéis, os animais em laboratório e dos matadouros, os trabalhadores e trabalhadoras informático-sexuais, putos funcionais diversos, somos os sem-terra, os migrantes, os autistas, os que sofremos de déficit de atenção, excesso de tirosina, falta de serotonina, somos os que temos gorduras demais, os inválidos, os velhos em situação precária. Somos a diáspora raivosa. Somos os reprodutores fracassados da Terra, os corpos impossíveis de rentabilizar para a economia do conhecimento”. Parte disso que compartilhei é para dizer também que, todos os dias, continuo sem saber muito sobre mim ou sobre a Literatura. Esse tem sido um caminho possível. Retomo a palavra coragem que você se referiu no começo da conversa. Como eu disse, uma das minhas verdades é que ainda tenho muito medo. Agora, muito mais medo. Mais ainda desejo o futuro.

Raimundo Neto
É psicólogo e trabalha no Tribunal de Justiça de São Paulo. Com o livro de “Todo esse amor que inventamos para nós” venceu o Prêmio Paraná de Literatura 2018. Colaborou com sites e revistas literárias, como a “São Paulo Review”. Nasceu no Piauí, em 1982, onde viveu até 2014, quando mudou-se para São Paulo. Foi um dos convidados do evento literário Printemps Littéraire Brésilien que aconteceu na França, em 2019.
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho