🔓 Evocando os amigos

Para enfrentar a pandemia, teremos, se quisermos sobreviver e não contribuir para espalhar ainda mais a doença, de nos manter confinados por algum tempo mais
15/02/2021

A pandemia do novo coronavírus, que já vai no seu segundo ano sem um horizonte temporal claro sobre a sua esperada superação, tem-nos obrigado a um confinamento generalizado, que só os negacionistas e os necroliberais se recusam a aceitar como o melhor remédio para prevenir o contágio e alastramento da Covid-19 (é ver alguns deles, no entanto, correndo atrás das vacinas, mesmo não obedecendo aos critérios estabelecidos pelas autoridades sanitárias da maioria dos países para definir quais as prioridades da vacinação).

As esperanças alimentadas no final de 2020, com a aprovação das primeiras vacinas, desenvolvidas em tempo recorde pelos cientistas, tiveram imediatamente de ser temperadas, por causa das falhas de gestão da maioria, se não a totalidade das nações, da subestimação da capacidade de produção das farmacêuticas à indefinição dos critérios para pôr em prática planos de vacinação justos, coerentes e capazes realmente de contribuir para a rápida imunidade de grupo e para pôr a economia a funcionar normalmente.

As diferenças “geopolíticas” de acesso às vacinas, com as nações mais pobres, sobretudo em África, a ficarem escandalosamente para trás, ou de “classe”, como se assiste em alguns países, onde indivíduos estão a ser vacinados antes da sua vez pelo simples motivo de possuírem privilégios de toda a sorte, confirmam mais uma vez aquilo que todos sabemos: o mundo é injusto e a humanidade é igual (daí que, por exemplo, todos os supremacismos identitários me incomodem; isto não quer dizer, entretanto, que os oprimidos e marginalizados não precisem de lutar pela sua identidade, desde que não se limitem a replicar os opressores e sejam capazes de supera-los moralmente).

E poderão as coisas ser de outro modo? Só a luta nos pode dar as respostas.

O que quero dizer é que, para enfrentar a atual pandemia, teremos, se quisermos sobreviver e não contribuir para espalhar ainda mais a doença, de nos manter confinados durante algum tempo mais. De igual modo, precisaremos de continuar a respeitar duas outras recomendações básicas: usar máscara em locais públicos e manter o distanciamento físico.

Eu disse distanciamento físico e não distanciamento social. É que me recuso a entender a necessidade de não ver pessoalmente os amigos com qualquer distanciamento “social”. Pelo contrário, defendo que o distanciamento físico nos obriga a pensar ainda mais nos amigos que temos. Hoje, felizmente, há meios tecnológicos que nos permitem contacta-los, saber deles, partilhar com eles informações, boas e más, enfim, manter e alimentar as nossas diferentes relações sociais, com as suas peculiaridades, formas e exigências. Nem tudo está perdido.

Muitos dos meus amigos estão ligados à arte a à literatura. Quando estava a pensar em escrever esta coluna, alguns deles vieram-me à cabeça simplesmente, sem que eu tivesse precisado de convoca-los. É assim a amizade. Não carece de intimação.

Decidi, por isso, mandar um email a todos eles, pedindo notícias suas e partilhando com eles várias das ideias, planos e projetos que, aos 65 anos, me mantêm perfeitamente ativo e entusiasmado. Já me arrependi de diversos erros cometidos na minha vida pessoal, penitenciei-me por hesitações que me fizeram abdicar de várias oportunidades, perdi todas as ilusões, inclusive políticas, que explicam, mas talvez não justifiquem, algumas das minhas escolhas e decisões equivocadas. Espero poder viver muito, para fazer coisas novas.

Como escrevo num jornal brasileiro, não quero esquecer também alguns dos meus muitos amigos nesse país, como Muniz Sodré, Carlos Augusto de Oliveira Lima, Edson Santos, Martinho da Vila, Sérgio França, Regina Zappa, Cristina Soares, Regina Rocha, Mário Lugarinho, Rita Chaves, Tânia Macedo, Laura Padilha, Carmen Tindó, Nazaré Fonseca, Íris Amâncio, Teresa Salgado e outros, que a memória decidiu preservar neste momento em que estou a terminar o texto.

Uma palavra final para três poetas – Moacyr Félix, Fernando Ferreira de Loanda e Otávio Mora – e um editor, Ênio da Silveira, com quem tive grandes conversas na minha casa na Assis Brasil, em Copacabana, para mim o bairro mais democrático do mundo (ainda o será?), ao som de música brasileira, africana e latino-americana (vêm-me à cabeça, neste preciso momento, os sons dolentes de Ataulpha Yupanqui). Todos eles já se foram. O que diriam, entretanto, se estivessem a viver estes tempos sombrios e, ao mesmo tempo (depende de nós), potencialmente luminosos?

* O autor escreve conforme o acordo ortográfico e consoante a variante angolana da língua portuguesa.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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