* O autor escreve consoante o acordo ortográfico e a variante angolana da lĂngua portuguesa.
Acaba de sair em Portugal – com publicação em Angola anunciada para breve pela editora Mayamba – uma antologia da poesia angolana organizada pela professora Irene Guerra Marques e o poeta Carlos Ferreira (CassĂ©), sob o tĂtulo Entre a lua, o caos e o silĂŞncio: a flor. A edição portuguesa Ă© da Guerra e Paz. Alguma editora brasileira poderá ponderar igualmente a sua publicação? NĂŁo tenho dĂşvidas do interesse da obra para o pĂşblico brasileiro, em particular especializado, mas nĂŁo sĂł.
Trata-se de uma obra nĂŁo sĂł monumental, como fundamental. Com um total de 679 páginas, o livro constitui a maior e mais completa antologia da poesia angolana organizada atĂ© agora, abarcando toda a produção poĂ©tica nacional desde o perĂodo oral atĂ© aos nossos dias, dominados inevitavelmente pela escrita.
Refira-se que, para distinguir os dois perĂodos, costuma designar-se por “oratura” o conjunto de estĂłrias, canções e poemas produzidos no perĂodo oral. Como escreveu o professor Francisco Soares, no precioso prefácio da obra, “a literatura desenvolve-se e propaga-se pela palavra escrita, mais precisamente pelo uso das letras para designar os sons da linguagem. O sistema onde se inclui a literatura, porĂ©m, assenta sobre várias esferas de circulação artĂstica e, portanto, integra as oralidades (…)”.
Os autores antologiaram, assim, 664 textos, dos quais 32 sĂŁo transcrições de poemas orais em quatro lĂnguas africanas de Angola: kikongo, kimbundo, cuanhama e umbundo. O nĂşmero total de autores representados em Entre a lua, o caos e o silĂŞncio: a flor Ă© de 135, organizados por ordem alfabĂ©tica. A poesia oral, como se sabe, tem autoria popular e anĂłnima, em todas as culturas e civilizações.
A estrutura da antologia organizada por Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira é simples. O livro está dividido em três partes: 1. Formas de arte verbal ou oratura; 2. Precursores (séculos 17-19), compreendendo duas secções, uma com os primeiros textos poéticos manuscritos, no século 17, e outra com os primeiros textos poéticos escritos, no século 19; e 3. Modernidade e Contemporaneidade (continuidades e descontinuidades), abrangendo os séculos 20 e 21.
Compreensivelmente, os autores modernos e contemporâneos são os mais representados, com um total de 124 em 135 poetas.
Na parte final do livro, antes das biografias dos dois antologiadores, constam ainda uma série de desenhos do grande pintor e ilustrador progressista luso-angolano José Rodrigues (irmão de Irene Guerra Marques), que nasceu e morou em Angola, tendo participado na luta clandestina contra o fascismo e o colonialismo português.
Para avaliar com uma frase a antologia em questĂŁo, pode dizer-se que a mesma veio confirmar, como se isso ainda fosse necessário, que a literatura angolana há muito que nĂŁo carece de demonstrar nada a ninguĂ©m. Possuidora de uma histĂłria comprovada e composta por uma sĂ©rie de autores de diferentes origens, idades, percursos e experiĂŞncias, explorando temáticas várias, recorrendo a estilos peculiares e, last but not the least, demonstrando graus de qualidade dĂspares, como acontece com toda e qualquer literatura, constitui, por conseguinte, um sistema perfeitamente consolidado.
O facto de, como bem observa o professor Francisco Soares no prefácio da antologia, a atual comunidade literária angolana se caracterizar por uma evidente atomização não põe em xeque essa realidade – a existência de um sistema literário maduro e consolidado -, pelo contrário, reforça-a.
Entre a lua, o caos e o silêncio: a flor é, explica o professor Francisco Soares, uma antologia maximalista. O seu principal critério, portanto, é a abrangência. Na realidade, fazia falta, quer aos leitores quer aos estudiosos, uma recolha representativa como esta, que não hesitou em incluir, segundo observou Soares, muitos autores que têm ficado esquecidos em antologias anteriores ou que sequer tinham sido notados até agora.
Sabendo-se que, de qualquer forma, as antologias parciais ou limitadas (outra maneira de chamá-las “minimalistas”) sĂŁo sempre tentativas de manifestação de poder (cultural e literário), Francisco Soares conclui judiciosamente: – “Uma antologia como a presente supera todas as tentativas anteriores, precisamente porque nĂŁo vem negociar poder cultural, apenas mostrar o mais possĂvel. É como se nos dissessem: tudo bem, lutem pelo poder cultural, mas nĂŁo se esqueçam que nĂłs somos e fomos isto tudo”.
Quanto Ă sua estruturação, a obra de Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira obedece a dois critĂ©rios, que se complementam: o cronolĂłgico e o comparativo. A disposição temporal dos perĂodos fixados pela antologia (oratura, precursores, modernidade e contemporaneidade) obedece, assumidamente, ao primeiro critĂ©rio. Mas Soares vislumbra igualmente no livro um critĂ©rio comparativo, “na sua leitura da nacionalidade literária. De comparações Internas, Ă© claro, mas pertinentes, na medida em que nos trazem a consciĂŞncia do que se perdeu e se ganhou a cada passo”.
Aliás, o critério cronológico foi mesmo totalmente abandonado pelos autores na parte moderna e contemporânea da antologia. Assim, os autores aparecem representados por ordem alfabética, ditada pelo primeiro nome pelo qual são conhecidos como poetas. Como efeito, os leitores podem observar sobretudo a poética individual dos autores e não o contexto em que eles viveram e produziram.
Caberá aos leitores, portanto, e como sublinha o prefaciador de Entre a lua, o caos e o silêncio: a flor, “encontrar as ligações, anotá-las e construir assim a sua perceção ou representação do nosso panorama poético”.