1.
É pena que Montaigne seja conhecido apenas por meio de frases pinçadas de sua obra maior, Os ensaios, as quais circulam nas redes sociais de autoajuda. Humanista do Renascimento, Michel de Montaigne desenvolvia pensamentos complexos, muitas vezes autorreferenciais, mas quase sempre recorrendo a autores da Antiguidade greco-romana, e não só. Essa complexidade, contudo, não significa hermetismo. Obedece a uma lógica interior derivada da relação de causa-e-efeito dos argumentos, e, por isso, pedem um pouco de concentração, numa época descabeçada como a nossa.
2.
Sim, há quem se queixe das inúmeras citações em latim, mas temos de entender que o latim circulava como língua corrente para expressão das ideias. Boa providência, considerando a multiplicidade de línguas em formação e dialetos que circulavam pela Europa. Ademais, sem susto: as traduções vêm logo a seguir às citações. E não será má ideia aprender a doce fluência musical dessas frases, mesmo que não saiba o que possa significar, em português, a palavra latina “rosa”.
3.
Para já, o título, Os Ensaios, que devemos interpretar de modo radical: são tentativas a que se propõe o filósofo, sem pretensão de escrever de modo cabal e definitivo. Humildade? Não. Inteligência. Esse caráter de provisoriedade aparece aqui e ali, como um espírito que vaga nos subtextos, nas interrogações e perplexidades que partilha conosco. Com suas constantes dúvidas, ele nos traz um frescor juvenil para um autor do século 16.
4.
A nota inicial é de uma simplicidade infantil: “Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeições, minha forma natural de ser, hão de se ler ao vivo, tanto quanto a decência pública me permitiu”. E diz que se vivesse a “doce liberdade” dos indígenas, certamente teria se apresentado nu, com o corpo pintado: “Assim, Leitor, sou eu mesmo a matéria desse livro”. Quem pensa que isso foi escrito em 2023, atente para a assinatura: “De Montaigne, neste primeiro de março de mil, quinhentos e oitenta”. Estamos, mesmo, perante o intelectual que já venceu as ostentações e vaidades. Um belo exemplo perante o esnobismo de alguns meios de hoje, inclusive quando comentam Montaigne.
5.
Um aspecto que ressalta de Ensaios é a defesa do livre-arbítrio. Isso, hoje, seria uma platitude. Mas pensemos na Europa, no período: tratava-se de uma ousadia, de um crime, até. Não esqueçamos: Galileu e Giordano Bruno ainda seriam condenados por suas ideias, e a inquisição portuguesa só seria extinta em 1821. Talvez nem precisemos ir tão longe nem tão distante no tempo. E é com essa liberdade que ele examina vários temas, e todos me impressionam. E atenção: usa a primeira pessoa, tal como Agostinho de Hipona, que terá sua coluna aqui no Rascunho. Considero muito saudável esse uso, o qual vejo retornar à Universidade depois de um tempo de anátema. Aliás, textos que fizeram a Humanidade transformar-se, esses, todos usaram a primeira pessoa. Devido à natural limitação do espaço da coluna, escolhi os dois temas que mais me esmagam pela sua lucidez. Um se refere à educação das crianças, e o outro, aos aborígenes da América [leia-se: do Brasil]. Terei de usar paráfrases, dado que as citações ocupariam um tamanho enorme.
6.
Sobre a educação dos jovens — Impressiona ler este ensaio, pois poderia ser assinado por qualquer pedagogo do nosso século. Montaigne execra o ensino de seu tempo, todo baseado na autoridade do professor e na ignorância do aluno. Nada de encher o aluno de conhecimentos que ele tem de decorar; a melhor atitude magisterial é fazer com que o docente chegue por si mesmo ao conhecimento e que, antes de tudo, possa duvidar. Duvidar, em vez de acreditar, é a única forma de adquirir conhecimento. Ele não queria que só o professor tivesse o direito de inventar ou falar; antes disso, deve mais ouvir do que falar. E utiliza a imagem da instrução do tipo funil na cabeça do aluno, em que abomina a ação dos professores que metem no funil todo o conhecimento. Mas suas preocupações de natureza psicológica são atuais: numa época em que se valorizava o estudo de queimar pestanas, à maneira de um Dr. Fausto metido numa biblioteca, Montaigne faz uma alerta aos mestres: que tivessem cuidado com os alunos que se dedicassem a ler obsessivamente devido a um temperamento melancólico e antissocial; isso poderia significar uma falta de capacidade de convivência. Aliás, o próprio Montaigne unia a cultura à prática, tendo assumido funções administrativas em sua cidade.
7.
Dos coches e Dos canibais — No primeiro, Montaigne faz-se gracioso brincando com um título de propaganda enganosa: ele nos fala, na verdade, dos índios e, no segundo, também dos índios, claro, mas a partir da perspectiva do canibalismo. Um dado importante: lembremos que Europa conhecia o Novo Mundo havia poucos anos, que, assim, se tornava uma total novidade, o que não impedia os “homens civilizados” de matar e destruir, à busca do ouro e da prata. O que ele nos diz em ambos os ensaios é, sim, escrito pelo mesmo homem, e esse homem condena o massacre que o homem branco [ele dizia “europeus”] realizava, sem a menor solidariedade, sobre civilizações mais antigas e sábias, que apenas querem viver suas vidas em paz. Com que autoridade faziam isso? Compara o Velho Mundo com o Novo, e, nesse cômputo, o Velho sai em imensa desvantagem. A Europa só fazia guerrear contra seus semelhantes, e sempre por motivos políticos e econômicos, e nisso praticando barbáries inenarráveis; na América, usavam da mesma atrocidade sobre os indígenas. Já a guerra, quando acontecia entre os “canibais”, era por motivos nobres e, numa linguagem de hoje, seria possível dizer: derivados não na cobiça, mas na honra.
8.
Montaigne é, assim, um intelectual que foi além dos princípios humanistas, atingindo um estágio perigoso de livre-pensar que o remete às portas do Iluminismo, chegando, inclusive, a superá-lo com uma ideia atual: o da solidariedade ou, como está na moda dizer, empatia. Sua leitura, além de ser um belo exercício intelectual, significa adquirir relativizar as inovações culturais de nosso tempo, mostrando-nos que somos os mesmos desde que nos conhecemos como Humanidade; o que falta são pessoas que nos mostrem isso com clareza, simplicidade e força. Michel de Montaigne é uma dessas. Por essas e outras razões que o leitor descobrirá. Por sua atualidade e força, Os ensaios merecem ir para nossa mochila.