Conversa com Francesca Cricelli
1.
Carola: Lembro de forma muito vĂvida os nossos encontros em SĂŁo Paulo, era 2018, Ă©poca das eleições, eu estava muito angustiada, lembro que num desses encontros, por acaso num restaurante, sem falar nada, te abracei e chorei, chorei por tudo aquilo que estava acontecendo. De alguma forma, eu sabia que algo nos irmanava. Talvez um passado de deslocamentos, talvez um olhar para o mundo, talvez um saber… Um ano depois, eu tinha vindo morar aqui em ColĂ´nia, nos reencontramos num evento na Universidade, e tudo tinha mudado, na minha vida, na sua (vocĂŞ tinha se mudado para a Islândia), tudo tinha mudado no paĂs.
Francesca Cricelli: De fato, nosso encontro tem algo de onĂrico para mim. NĂŁo me lembro exatamente como nos falamos pela primeira vez, se foi por e-mail ou alguma rede social, mas eu fiquei muito emocionada por me sentir tĂŁo acolhida quando nos vimos, eu já era sua leitora e admirava tanto sua obra e me parecia um sonho saber que vocĂŞ queria ler o Repátria. Depois, senti de imediato uma intimidade como se aquele fosse um reencontro de antigas amigas, mas acabávamos de nos conhecermos, morávamos no mesmo bairro, sofrĂamos pela situação polĂtica e sentĂamos saudade de algo tĂŁo bom e fecundo que SĂŁo Paulo já havia nos ofertado. No meio de tanta conversa emocionada, lembro-me tambĂ©m que demos boas risadas, falamos sobre nossa paixĂŁo pela psicanálise, falamos do “Dr. Fritz”, vocĂŞ me contou das idas ao restaurante mexicano e dos mariachis, de imediato senti uma ligação muito forte, talvez por conta de nossos inĂşmeros deslocamentos e buscas por questões identitárias entre lĂnguas e paĂses, algo que acabamos criando na escrita — como um lugar de pertencimento. 2018 foi um ano especial para mim, um pouco antes de terminar minha tese de doutorado acabei viajando muito, fui atĂ© Ă China para um festival de poesia e para dar algumas aulas na Universidade de Pequim, tambĂ©m saiu um pequeno livro meu por lá e passei meu aniversário em Xangai, onde ele foi apresentado, e foi nessa viagem que decidi que me mudaria para a Islândia apĂłs minha defesa. No mesmo ano, fui tambĂ©m Ă Islândia para um congresso e Ă Croácia em outro festival literário e Ă Flip em Paraty, sinto que esses deslocamentos contĂnuos eram uma forma um pouco excĂŞntrica que encontrei para suportar o medo do que estava por vir, a situação polĂtica já muito tensa desde o golpe de 2016. Uma noite, voltando para casa em Pinheiros, parei com amigos para fixar um lambe-lambe “Fora Temer”, nĂŁo lembro agora se isso foi em 2016 ou 2017, um homem marombado num carro nos viu, deixou o automĂłvel ligado no semáforo vermelho, desceu e veio em nossa direção tentando nos agredir fisicamente, Ă©ramos duas mulheres, voltamos correndo para minha casa. Senti muito medo. No dia seguinte Ă s eleições tambĂ©m fui agredida por uma vizinha, pois ao ser confrontada sobre os resultados falei que estava muito triste, mas de cabeça erguida e batom vermelho saĂa para trabalhar — ela ficou furiosa e disse: “quando pessoas como vocĂŞ forem embora daqui, o Brasil vai melhorar”. Minha ideia de deixar o Brasil era mais ligada ao encontro amoroso com meu companheiro e a um desejo de me aventurar num lugar tĂŁo diferente, a Islândia, mas havia tambĂ©m uma angĂşstia sem nome que pairava no ar e que se reforçava com esses episĂłdios hostis. Sentia que nĂŁo havia muita perspectiva, naquele momento, para permanecer no Brasil apĂłs o doutorado, com isso tambĂ©m havia alguma ilusĂŁo (errĂ´nea) de que conseguiria me encaixar facilmente no mundo acadĂŞmico daqui, por ter sido bem-recebida durante alguns congressos, mas nĂŁo foi bem assim depois que me mudei. Agora estou há quase dois anos na Islândia, ainda estamos atravessando uma pandemia, a lembrança do nosso encontro e daqueles anos parece um relato literário, a cena de um filme, naquele encontro jamais pensei que passarĂamos por tantas das coisas que estamos vivendo hoje, embora já previa o desmonte do paĂs encaminhado pelo atual governo. Como ficou para vocĂŞ essa questĂŁo da distância e da angĂşstia polĂtica atravessadas pela pandemia? Sei que a Alemanha está fechada desde janeiro para nĂŁo residentes ou nĂŁo alemĂŁes, minha mĂŁe está com um voo marcado de SĂŁo Paulo para cá via Francoforte e atĂ© agora nĂŁo conseguiu embarcar. Eu me sinto sequestrada por esses acontecimentos, as novas ondas do vĂrus, as variantes, os negacionistas e anti-vacina mesmo aqui na Europa.
Carola: VocĂŞ usou a palavra “sequestrada”. Eu acho que define bem esta Ă©poca, os Ăşltimos acontecimentos, pandemia, etc. E se acrescentarmos a situação polĂtica do Brasil, parece que afundamos numa longa noite (ou talvez nunca tenhamos saĂdo dela). Ao mesmo tempo, atĂ© a longa noite tem suas luzes, esses momentos de respiro, de vida, de alegria. Parece que a pulsĂŁo de vida (isso que move o sol e as outras estrelas) se tornou nossa principal forma de resistir, de seguir em frente. Em relação Ă distância polĂtica atravessada pela pandemia, eu tenho uma sensação bem curiosa, me sinto mais perto do Brasil do que nunca, mesmo estando geograficamente longe, eu vivi uma pandemia muito diferente da dos alemĂŁes porque vivi uma pandemia marcada pelos acontecimentos no Brasil, tanto pessoais quanto polĂticos. A gente pode estar geograficamente longe, mas estar muito perto e tambĂ©m ao contrário, pode estar no centro dos acontecimentos e se manter completamente alienado a eles.
Francesca Cricelli: Concordo com o que vocĂŞ traz aqui, adorei a citação do Dante, l’amor che muove il sole e l’altre stelle. Sinto que tambĂ©m tenho atravessado esses meses com uma ligação profunda aos acontecimentos no Brasil, talvez nessa distância estou aprendendo outra vez o que Ă© pertencer a uma terra, nĂŁo importa onde estamos, mas há algo que insiste e nĂŁo podemos escolher, está presente em nossos dias e em nossa constituição Ăntima.
2.
Carola: VocĂŞ vem de constantes deslocamentos, entre lĂnguas (portuguĂŞs, inglĂŞs, italiano, espanhol, etc.), paĂses, gĂŞneros literários, vocĂŞ transita e eu acho linda a forma como isso aparece no seu trabalho. E agora está estudando islandĂŞs, lĂngua e literatura islandesa. Eu me pergunto, que portas outras e inesperadas se abrem? Que facetas aparecem no espelho?
Francesca Cricelli: O primeiro impacto com a lĂngua islandesa, muito antes de pensar que viria morar aqui, me provocava certa graça, sentia-me envolta numa memĂłria primitiva da prĂ©-linguagem, ouvia o Luciano se comunicando e como lhe respondiam, depois saĂamos Ă s ruas, sĂł os dois, e eu fazia uma espĂ©cie de imitação do diálogo preenchendo com sentido o que era sĂł som. NĂŁo tenho conhecimento cientĂfico sobre os processos de aquisição de linguagem das crianças, mas na minha fantasia aquela experiĂŞncia me remetia a algo primitivo e esquecido que eu já havia vivido. Eu claramente estava romantizando aquela vivĂŞncia, quando de fato me mudei para cá, minha reação foi bem diferente ao viver dia apĂłs dia uma espĂ©cie de exĂlio linguĂstico, na verdade era muito angustiante. Embora eu já dominasse muito bem o inglĂŞs, sentia-me mal por abordar todos numa lĂngua que nĂŁo era nem a minha nem a deles, sentia-me no mesmo lugar de um turista, mas eu já morava aqui. AlĂ©m disso, havia o estranhamento profundo de todas as coisas, a temperatura, a pressĂŁo atmosfĂ©rica no paralelo 64 norte, a incidĂŞncia da luz do sol oblĂqua e por sĂł trĂŞs, quatro horas no inverno, o gelo, a neve, o estranhamento do supermercado, a escassez de frutas e verduras, tudo escrito em islandĂŞs (e atĂ© aĂ tudo bem, logo fui aprendendo algumas palavras), mas muitos produtos importados dos paĂses nĂłrdicos com rĂłtulos em dinamarquĂŞs, sueco, finlandĂŞs. Eu chegava em casa exausta apĂłs fazer compras no supermercado, precisava deitar. Comecei a experimentar o avesso do meu encantamento, talvez o terror que se vive quando ainda nĂŁo há a linguagem e a comunicação passa por algo intuitivo, pela adivinhação — como Ă© entre mĂŁe e bebĂŞ, talvez isso tambĂ©m se aloje em algum lugar da nossa memĂłria, na mente, no corpo. Acho que as portas inesperadas sĂŁo essas de uma vida prĂ©-linguagem, porque o islandĂŞs Ă© uma lĂngua muito antiga, ela se preservou praticamente igual desde os anos da colonização depois do ano 874, a minha primeira professora dizia que “aprender islandĂŞs Ă© aprender a acariciar um dinossauro”. É uma lĂngua nĂłrdica germânica, mas muito antiga, um latim nĂłrdico, como dizia Borges. Outra porta inesperada, para mim, foi adentrar a complexidade de uma lĂngua que preservou suas declinações, vocĂŞ me entende por viver há tanto tempo dentro da lĂngua alemĂŁ, mas nĂłs perdemos essa complexidade nas lĂnguas românicas, essa tridimensionalidade sĂł existe nos pronomes, demorei algum tempo para “incorporar” isso em meu raciocĂnio, no começo houve muita resistĂŞncia, mas depois seguiu um encantamento. Tenho praticado isso traduzindo poemas islandeses para o italiano e o portuguĂŞs, depois de traduzir observo novamente o poema fazendo uma retro-tradução, tentando entender porque as palavras estĂŁo declinadas daquela forma. Há tambĂ©m uma condensação numa lĂngua dessas e isso me fascina, como Ă© possĂvel expressar tanto com tĂŁo poucas palavras. No espelho surgiram facetas que estavam escondidas há muito tempo, aliás, eu achei que elas nem existiam mais, eu que passei por tantas circunstâncias de nĂŁo saber a lĂngua do paĂs em que me encontrava, que havia recalcado os sofrimentos da mudança para a Itália aos 9 anos e para a Malásia aos 11, eu que sĂł me lembrava das coisas boas que essas experiĂŞncias me trouxeram, vivenciei uma angĂşstia e perda de sentido de identidade. Mesmo adulta, mesmo equipada intelectual e emocionalmente, me vi desprovida daquilo que me enraizava na minha existĂŞncia nos Ăşltimos 15 anos: falar portuguĂŞs todos os dias, ter construĂdo uma existĂŞncia em torno do trabalho literário como poeta, tradutora e professora, a vida acadĂŞmica, de alguma forma meu ser estava atrelado a tudo isso, eu vivia uma vida rica de encontros e amizades. Me vi de repente feliz por estar perto da pessoa que amo e que escolhi como companheiro, mas sem a minha lĂngua pĂşblica, sem a minha vida pĂşblica, o portuguĂŞs se tornou novamente uma lĂngua domĂ©stica, na rua eu falava em inglĂŞs, sentia pavor de alguĂ©m me abordar em islandĂŞs, sentia vergonha por nĂŁo entender a lĂngua local e me sentia Ă margem, mesmo logo encontrando amigos e sendo acolhida pela comunidade dos escritores estrangeiros que moram aqui. Eu perdi minha persona pĂşblica e observei que muito daquela construção era uma espĂ©cie de amparo, muleta, nĂŁo era algo falso, mas escondia outros aspectos. Essa vulnerabilidade nĂŁo foi fácil de atravessar, mas me devolveu muitas coisas boas, um sentido mais pleno de mim, me vi desamarrada da minha persona pĂşblica, me vi livre. Mas a liberdade tambĂ©m causa vertigem. Acho que eu vivia tĂŁo identificada com o meu “fazer” no mundo que havia perdido os rastros de algo mais, de alguma outra coisa que tambĂ©m era eu e que vivia sem espaço para ser.
Carola: Acho super interessante o que vocĂŞ diz sobre perder a pessoa pĂşblica que se Ă©. Me fez lembrar de uma conversa que tive com a minha analista, logo no inĂcio da análise, eu disse algo como “ah, mas isso nĂŁo sou eu, isso Ă© a persona da escritora”, e ela respondeu: mas a persona da escritora tambĂ©m Ă© vocĂŞ, nĂŁo há mais como desfazer-se dela”. E eu carrego essas palavras comigo atĂ© hoje. Digo isso porque, me parece, a pessoa pĂşblica que a gente Ă© nĂŁo Ă© nossa Ăşnica persona, claro, mas ela continua ali, mesmo nos momentos em que silencia, quando caminhamos na rua num paĂs estrangeiro, quando falamos um outro idioma, ela continua lá, Ă© parte de quem somos. Isso de certa forma me conforta. O que, claro, nĂŁo diminui a vulnerabilidade, já que no fundo, tudo Ă© persona, tudo Ă© ilusĂŁo. Acho lindo o que vocĂŞ diz sobre essa experiĂŞncia de se ver numa lĂngua totalmente estrangeira como uma re-experiĂŞncia da infância, esse balbuciar que nos marcou. Esse retorno ao real da prĂ©-linguagem. Poder olhar com curiosidade e mistĂ©rio para aquilo que veio antes de nĂłs.
Francesca Cricelli: E eu nĂŁo havia pensado nisso que vocĂŞ me trouxe aqui, que claro, a persona pĂşblica tambĂ©m somos nĂłs, afinal isso tambĂ©m foi e Ă© uma construção, nĂŁo Ă©? Eu acho tĂŁo gostoso conversar com vocĂŞ, Carola, mesmo que seja por “correspondĂŞncia”, aqui. Sinto que essa troca mistura uma sensação de estarmos sentadas Ă mesa juntas tomando um chá e, ao mesmo tempo, Ă© como se eu estivesse respondendo a uma carta. Eu que amo cartas! Fico pensando nas suas palavras “poder olhar com… mistĂ©rio para aquilo que veio antes de nĂłs” nessas Ăşltimas semanas que antecedem a cesura que será o nascimento do meu filho, acho que estou observando em silĂŞncio esse porvir enquanto acaricio a barriga e converso com ele. Lembro-me de um livro de Winnicott, no qual ele diz: “a mĂŁe já passou pela experiĂŞncia do prĂłprio nascimento, mas o filho ainda nĂŁo”. Talvez nem faça sentido escrever isso, mas me abandonei Ă livre associação durante o nosso chá por correspondĂŞncia.
3.
Carola: Você está terminando (ou já terminou) o seu novo livro, Inventário de ébano, ao mesmo tempo em que aguarda o nascimento do seu filho. A metáfora livro-filho não é nova, mas sempre me interessa, já que cada escritora vive essa relação de forma diferente. Quando eu engravidei, parecia que tudo o que eu tinha escrito era de alguém que nada tinha a ver comigo, eu olhava para os meus livros muito surpresa de que em algum momento eu tivesse escrito aquilo. Como tem sido para você?
Francesca Cricelli: Me lembrei agora que em nosso primeiro encontro conversamos sobre sua filha, sobre a gravidez, sobre a reação dos seus pais. Lembro de uma sensação gostosa te ouvindo, eu pensava “será que eu vou ser mĂŁe tambĂ©m? olha sĂł, a Carola Ă© mĂŁe, escreve, já escrevia, continua escrevendo…”, eu acho que andava silenciosamente cortejando meu prĂłprio desejo de maternidade, mas tinha tanto medo (e desejo) que era difĂcil pensar a respeito, nĂŁo havia espaço para este pensamento. Tenho aprendido, nesses quase dois anos de Islândia, que uma parcela desse medo que eu sentia (e receio) era no fundo atrelada Ă s questões sociais e culturais que compõem o quadro da maternidade no Brasil, mas nĂŁo sĂł no Brasil, em geral nos paĂses da AmĂ©rica Latina e do sul da Europa, exacerbando ainda mais a divisĂŁo de classe — tenho experimentado por aqui como Ă© viver numa sociedade menos machista e com maiores garantias sociais, isso, certamente, confere mais espaço de manobra para certos desejos. Ter o mesmo acesso aos cuidados de prĂ©-natal e a um parto humanizado Ă© o denominador comum na Islândia, todas as mulheres de todas as classes sociais tĂŞm acesso a isso — que Ă© o mĂnimo. AlĂ©m disso, há outros fatores culturais que chamaram minha atenção, como, por exemplo, o sentido de comunidade (todos doam roupas de crianças, objetos que já nĂŁo usam mais e em geral nĂŁo há uma angĂşstia em fazer da gestação e da maternidade mais um parque de diversões do capitalismo desenfreado), tambĂ©m há uma rede de apoio pĂşblica, licença maternidade/paternidade de 12 meses e acesso Ă creche a partir dos 6 meses. Terminar Inventário de Ă©bano, livro que eu vinha escrevendo desde 2016, se tornou uma urgĂŞncia com a aproximação do meu Ăşltimo trimestre de gravidez. Minha primeira experiĂŞncia com a vivĂŞncia da mĂŁe que serei (e já estou sendo) Ă© algo que nĂŁo cabe ainda em palavras, tenho mais experiĂŞncia com livros do que com o que estou vivendo agora. Senti um desejo imenso de “deixar para trás” o que eu já havia escrito, claro que há diversos poemas escritos durante minha gestação. Mas senti um chamado profundo pela página em branco, preciso estar livre da minha prĂłpria escrita, quero acolher o ineditismo dessa vida em nossas vidas sem palavras prĂ©vias — que essa chegada seja inclusive uma inauguração de linguagem. Com isso, decidi colocar um ponto final no livro, editá-lo, organizar a “dramaturgia” ou “arquitetura” do livro, tirar poemas, acrescentar poemas, ordená-los. Em paralelo, eu vinha escrevendo um texto mais longo de prosa, Ă© um livro autoficcional sobre migrações, infância, linguagem e os lugares ocupados pelas mulheres da minha famĂlia (pequena e forte famĂlia matriarcal). Aliás, preciso dizer que o primeiro incentivador para abraçar essa aventura de escrita em prosa foi o Julián Fuks, viajamos a trabalho para uma pequena cidade no interior do estado de SĂŁo Paulo e conversa vai conversa vem ele me disse: “VocĂŞ precisa escrever esse livro”. Me tornar uma tradutora literária, uma tradutora de romances, tambĂ©m me permitiu soltar a mĂŁo em relação Ă prosa. Mas esse projeto chegou num ponto de estagnação, eu precisava de uma pausa, porque há algo ainda nĂŁo vivido ou nĂŁo concluĂdo, eu preciso atravessar esse momento e ter alguma distância dele para continuar escrevendo. Achei maravilhoso o que vocĂŞ disse sobre ler o que vocĂŞ havia escrito antes de estar grávida e ler novamente durante sua gravidez e nĂŁo se reconhecer. NĂŁo sei se senti isso, mas sinto uma urgĂŞncia pelo silĂŞncio e pela página branca, por uma separação dessa escrita que veio antes. O agora ainda nĂŁo tem forma de escrita, Ă© tudo tĂŁo imediato, imenso e corporal, minhas palavras nĂŁo alcançam e nem quero que alcancem. Eu, que sempre precisei das palavras, que forjei muito da minha existĂŞncia atravĂ©s delas, agora desejo a página branca. Queria marcar esse momento, deixar o Inventário para trás, um livro que Ă© muito importante para mim, mas preciso deixar espaço para algo maior do que a poesia, algo ainda desconhecido, ou sĂł conhecido pelos acenos do que tem sido nossa convivĂŞncia nesses quase 9 meses.
Carola: Que bonito. E isso tem a ver, ao menos faço essa conexĂŁo agora, com esse retorno da prĂ©-linguagem. Ter um filho Ă© uma experiĂŞncia pura do real, num sentido lacaniano, daquilo que nĂŁo pode ser representado, que foge Ă razĂŁo e Ă s palavras. Me parece que as suas experiĂŞncias na Islândia estĂŁo ligadas a esse espaço fora da linguagem, a essa busca pelo mistĂ©rio, pelo indizĂvel. Ter um filho pode ser uma travessia, no meu caso foi, e transformou a minha escrita de uma forma tĂŁo profunda que atĂ© agora nĂŁo sou capaz de explicar. Mas tudo bem, a gente nĂŁo precisa explicar tudo.
Francesca Cricelli: Pois é, tão bom sentir que não precisamos explicar tudo. É engraçado como o desejo se inscreve nas brechas. Antes de engravidar escrevi um relato autoficcional em prosa sobre esse desejo (sem ter consciência que eu estava escrevendo isso), depois, aqui na Islândia, escrevi uma série de poemas falando sobre o processo de fertilização do figo, das vespas que o fecundam e morrem, perdem as asas. E agora me sinto imersa nesse transe da espera, cada vez mais lenta, dentro da música Eu e água, cantada na voz da Maria Bethânia.
4.
Carola: Transcrevo aqui um trecho do livro Viver entre lĂnguas, da Sylvia Molloy. É uma passagem que me marcou muito quando li (tanto que citei na conversa com a Prisca tambĂ©m): Siempre se escribe desde una ausencia: la elecciĂłn de un idioma automáticamente significa el afantasmamiento del otro pero nunca su desapariciĂłn. Ese otro idioma en que el escritor no piensa, dice Roa Bastos, lo piensa a Ă©l. De que forma esse outro idioma nos pensa? Será esse outro idioma (ou esses outros idiomas) um sujeito adormecido do inconsciente? Que pensa e trama escondido. Ou será esse outro idioma uma possibilidade nĂŁo vivida, um “outro” que se mantĂ©m ali, vivendo sua vida em silĂŞncio.
Francesca Cricelli: Sou apaixonada pela Molloy, inclusive estive no lançamento deste livro precioso, editado pela Relicário, no Instituto Cervantes, em SĂŁo Paulo, foi uma Ă©poca de final de tese de doutorado, eu vivia num regime de clausura, mas nĂŁo resisti, tive que conhecer pessoalmente a autora. Trouxe poucos livros meus para a Islândia, mas Viver entre lĂnguas veio na mala. Gosto muito de pensar nesse outro idioma como uma possibilidade de vida nĂŁo vivida, ainda que eu escreva poesia em italiano e inglĂŞs (agora Ă© algo sempre mais esporádico, normalmente nasce com uma encomenda, com um pedido especial), o portuguĂŞs domina cada vez mais a cena. Certa vez me perguntei, durante minha análise, o que teria sido da minha vida se eu nĂŁo tivesse voltado ao Brasil, Ă s vezes sentia que teria de toda forma me tornado poeta, escritora e tradutora, mas seria o italiano a lĂngua principal, outras vezes sentia que talvez nunca teria me dedicado Ă escrita, que teria vivido uma vida feliz, mas mais corriqueira, sem esse atravessamento que se tornou algo central na minha existĂŞncia. Teria sido outra Francesca com o italiano como a minha lĂngua do cotidiano, da vida pĂşblica? Acho que sim. Contudo, trouxe a lĂngua italiana, a Itália, seus embates polĂticos e contradições comigo, e essa lĂngua continuou ocupando um lugar central na minha vida, mesmo no Brasil. Meu ganha-pĂŁo sempre foi dar aula de italiano e traduzir e trabalhar como intĂ©rprete, primariamente entre o italiano e o portuguĂŞs. AlĂ©m disso, sempre houve a presença da poesia e da literatura italiana como algo central na leitura e escrita, meu doutorado caminhou por essas veredas. Sinto, porĂ©m, que esse interesse foi proporcionado pela distância, pela saudade, pela ausĂŞncia — exatamente como descreve Molloy. Eu precisava recriar a Itália para mim no Brasil, minha forma de fazer isso passava pela tradução, pela leitura, pela escrita. Sinto que agora que vivo na Islândia se acrescenta a essa ausĂŞncia o Brasil, que Ă© sempre uma presença, mas que preciso, de alguma forma, recriar todos os dias atravĂ©s da lĂngua, das traduções, da mĂşsica. A lĂngua inglesa, por exemplo, ficou adormecida por um bom tempo dentro de mim. Foi a minha lĂngua principal dos 11 aos 18 anos, quando morava na Malásia, foi um grande esforço ter um domĂnio tĂŁo avançado e depois conseguir desconstruir as amarras sintáticas para voltar Ă fluĂŞncia no italiano e no portuguĂŞs. Quando terminei o colĂ©gio, enquanto todos os meus colegas (mesmo os que nĂŁo eram nativos em inglĂŞs) decidiam seguir seus estudos na Inglaterra ou nos Estados Unidos, eu vivia uma recusa e uma resistĂŞncia em seguir vivendo naquela lĂngua. Vivia um terror de que o portuguĂŞs e o italiano se tornassem minhas lĂnguas “de herança”, tinha uma sensação intensa de perder meus contornos — como diz Ferrante em seus livros, passar por uma smarginatura, ou como foi traduzido de forma brilhante pelo MaurĂcio Santana Dias (meu orientador de doutorado!): “desmarginação”. Minha experiĂŞncia com a linguagem percorre um caminho inverso, eu tinha tudo para me jogar plenamente nessa experiĂŞncia com uma terceira lĂngua, mas recusei. Decidi dar alguns passos atrás e procurar algo que eu nem mesmo sabia o que era, no meu passado, na minha histĂłria, e me reapropriar desses elementos perdidos. Depois, decidi escrever a partir desse lugar. E como vocĂŞ sente isso agora que está na Alemanha, quais sĂŁo “as outras lĂnguas” e de que forma estĂŁo te habitando? Fiquei curiosa, pensando se há algo disso nas reflexões de O mundo desdobrável — aliás, nĂŁo vejo a hora de ler!
Carola: Acho superinteressante o que vocĂŞ diz, o medo de perder uma lĂngua, eu sempre tive muito medo disso. Especialmente o portuguĂŞs, eu suportaria perder qualquer outra lĂngua, menos o portuguĂŞs. Algo que sĂł me dei conta há pouco tempo. É que o portuguĂŞs foi pra mim uma espĂ©cie de “tábua de salvação”, o idioma que me deu um lugar no mundo. Onde eu construĂ coisas muito concretas. Uma casa, um chĂŁo onde pisar… E essa “construção” Ă© algo meu, nĂŁo desaparece porque estou na Alemanha. Mas foi um longo caminho, de certa forma a literatura me deu isso, essa casa que eu transporto para onde for. A literatura me salvou de tantas formas.
Francesca Cricelli: É uma imagem linda, te vejo caracol e marujo com a lĂngua-casa por todos os cantos e os rastros-livros com os quais vocĂŞ nos presenteia, ajudando a encontrarmos nossa prĂłpria casa.
5.
Carola: VocĂŞ trabalha bastante com o gĂŞnero epistolar. Eu amei o seu texto Carta a Hanna Paulsson. Como tudo o que vocĂŞ escreve Ă© lindo, intenso e poĂ©tico. E tem um ritmo raro, Ă s vezes dá falta de ar, como se tua escrita nos obrigasse a reaprender a respirar. Mas quero falar do gĂŞnero. Quando escrevi Flores azuis, que Ă© de certa forma um romance epistolar, pensava no quanto a estrutura da carta permite certos mergulhos que outros gĂŞneros nĂŁo abarcariam, algo que se move entre o mais Ăntimo e o mais exterior, a imagem (de Alice) no espelho. E tambĂ©m a possibilidade de retomar a ideia da mensagem numa garrafa, para todos e para ninguĂ©m.
Francesca Cricelli: Eu adoro Flores azuis, assim como os seus outros livros. Foi o Ăşltimo que li, embora seja dos mais antigos seus. Li justamente na Ă©poca do doutorado, minha tese seguiu a descoberta de cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco, atĂ© entĂŁo inĂ©ditas, nessa Ă©poca me cerquei tambĂ©m de romances epistolares, alĂ©m das leituras teĂłricas, pois sentia que havia algo alĂ©m do biográfico nas cartas, havia algo de ficcional, havia uma ficcionalização do biográfico, e sentia que a leitura de textos literários de ficção — para alĂ©m de outros compĂŞndios epistolares — pudessem iluminar essa questĂŁo. Fico feliz que vocĂŞ tenha gostado da “Carta a Hanna Paulsson”, gostaria de escrever outras cartas assim, vamos ver se darei conta. Eu sempre tive um imenso fascĂnio pelas missivas e nĂŁo sei bem como isso nasceu. Quando era criança, sempre escrevia bilhetes para os meus pais, ambos trabalhavam muito e eu os via pouco, deixava-os escondidos nos bolsos, nas bolsas, nos casacos. Eles os encontravam em algum momento e no final do bilhete havia sempre alguma pergunta com a possibilidade de escolherem Sim ou NĂŁo como resposta. Relembrando, fico pensando se já nĂŁo era um gesto para aproximar a distância, como sĂŁo as cartas, ou uma forma de me expressar para entender o que eu sentia. Acho que a carta tem esse fascĂnio por poder ser uma escrita em primeira pessoa, mesmo dentro de um romance, de um texto ficcional, e ter um endereçamento (que seja para todos, para ninguĂ©m ou para alguĂ©m em especĂfico). Fiquei pensando agora na breve carta que Cesare Pavese deixou quando se suicidou. Um gesto Ăntimo, sim, mas tambĂ©m, em alguns casos, uma escrita já pensada para outros leitores, para alĂ©m do leitor a quem Ă© endereçada. Pavese foi nĂŁo sĂł um grande escritor, poeta e editor, mas tambĂ©m um exĂmio escritor de cartas, amo suas missivas, tenho traduzido algumas e vejo nelas um gesto tambĂ©m de se revelar para um pĂşblico maior. O mesmo ocorre nas cartas de Ungaretti a Bruna, claro que sĂŁo cartas Ăntimas dentro de uma relação amorosa, mas havia na escrita do poeta toda uma intenção de discutir sua ideia sobre o que Ă© poesia e a carta, a conversa Ăntima, era algo que auxiliava a organização das suas ideias. Sinto que a troca epistolar pressupõe nĂŁo sĂł uma leitura, mas uma escuta. Nesse sentido, novamente, me faz pensar nesse hiato que existe entre o que Ă© escrito e o que Ă© compreendido, assim como o que Ă© dito e o que Ă© compreendido, por exemplo, num encontro psicanalĂtico: nesse caso, sempre me vem a metáfora de que os analisandos escrevem longas cartas e recebem de volta um postal do analista, uma imagem, poucas palavras. Uma das epĂgrafes da minha tese de doutorado foi “Sustento ao infinito, para o ausente, o discurso de sua ausĂŞncia”, um trecho de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Há algo de carta num livro, uma carta talvez atirada ao mar, nĂŁo sabemos quem será o leitor e quando isso acontecerá, com a poesia Ă© algo ainda mais radical, pois o tempo de recepção de um livro Ă© bem diferente.
Carola: Sim, há sempre esse “outro” a quem endereçamos nossas palavras (escritas ou faladas). VocĂŞ cita a carta de suicĂdio de Pavese. Por que será que temos essa necessidade? Antes eu achava que era uma necessidade ligada Ă permanĂŞncia, algo que permaneça, mas hoje suspeito que nĂŁo Ă© isso. Talvez as palavras jogadas ao vento, a carta de suicĂdio ou a mensagem na garrafa estejam mais ligadas a um atravessamento da alma, algo capaz de nos marcar e, quem sabe, de alguma forma, nos ajude a decifrar o enigma que Ă© estar aqui, mesmo que brevemente, essa luz que se acende.
Francesca Cricelli: Palavra-gesto, a carta. Acho que nesse endereçamento há sempre um desejo de um olhar, de uma escuta, nem sempre isso Ă© sĂł narcisismo, mas um desejo de acolhimento, reconhecimento especular, nossa existĂŞncia atravĂ©s da leitura do outro. Quem sabe…. ai, está tĂŁo boa essa conversa contigo!
6.
Carola: Deixo aqui um poema da Ana Martins Marques.
Sereia
Sereia
centauro
com sal
melhor Ă© tua metade
animal
a parte humana sendo humana
sempre mente
sĂł mesmo um peixe pode ser
contente
de nada te serviriam
joelhos ou pés
o que és é também
o que não és
nada
Ă© o que fazes bem
metade do que sou
não sou também
Francesca Cricelli: Que lindo esse poema da Ana, ao relĂŞ-lo, pensei no conto, do Kafka, O silĂŞncio das sereias, e em Quæstio de Centauris, do Primo Levi. SĂŁo dois dos meus contos favoritos, já os usei muito em sala de aula, acho que sĂŁo dois contos para os quais volto com frequĂŞncia. Levi se identificava muito com esse conto. NĂłs, que vivemos entre lĂnguas, entre mundos, que tentamos encontrar nosso lugar na escrita, num “entre”, temos algo desses seres que conjugam o humano e o mundo animal, mas isso talvez seja verdade para todos os solitários que regam sua imaginação com palavras. Deixo aqui para vocĂŞ um poema da poeta Corina Oprae, ela Ă© romena mas há muitos anos mora em Barcelona, escreve em catalĂŁo e espanhol, Ă© tambĂ©m tradutora literária, e autotraduz sua obra para o romeno. A tradução Ă© minha.
La meva llengua és la teva llengua.
La teva llengua és la meva llengua.
I no Ă©s que sigui un bescanvi.Â
És que si no faig de la llengua d’altri la meva llengua,
m’esclaten magranes de vidre dins la boca.
No només temo la meva ferida.
També penso en la teva.
***
Minha lĂngua Ă© tua lĂngua.
Tua lĂngua Ă© minha lĂngua.
E nĂŁo Ă© que seja uma troca.Â
É que se nĂŁo faço da lĂngua dos outros minha lĂngua,
explodem granadas de vidro na minha boca.
NĂŁo temo somente minha ferida.
Também penso na tua.
Carola: Que lindo. Pensei nessa lĂngua que nunca Ă© nossa, a lĂngua Ă© sempre a dos outros, dos que vieram antes de nĂłs, dos seus desejos, das suas ações. Como diz a psicanálise, em nĂłs fala um outro.