🔓 Discurso em Frankfurt

Na próxima sexta-feira, completam-se oito anos da conferência de abertura da feira em que o Brasil foi o país homenageado
Ilustração: FP Rodrigues
01/10/2021

O texto a seguir é a conferência pronunciada na abertura da Feira de Frankfurt, no dia 8 de outubro de 2013, ano em que o Brasil foi o país homenageado. Ele foi publicado no número 58 da revista alemã Blätter für Deutsche und internationale Politik, edição de novembro de 2013, e no volume 42, de 2013, da revista Mester, da University of California Los Angeles, além de ter sido reproduzido em diversos sites e blogues no Brasil e no exterior. Não fiz nenhuma mudança – o leitor há de perceber que, infelizmente, todos os dados apresentados naquela época pioraram de maneira radical nestes últimos oito anos.

Caso queira, você pode acompanhar a leitura neste link.

O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo “capitalismo selvagem” não é uma metáfora, mas expressão concreta de que a vida da maioria de seus duzentos milhões de habitantes vale pouco, quase nada? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar à fatalidade de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português-brasileiro, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.

O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir –, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro por meio da violência e da indiferença.

Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quase quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 600 mil, boa parte vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada “democracia racial” brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas “assimilação” dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se parte da população é miscigenada, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a “assimilação” se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.

Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil – outros 400 mil morreram durante a travessia do Atlântico. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: não são vistos entre médicos, dentistas, advogados, administradores de empresa, engenheiros, executivos, oficiais da polícia ou das Forças Armadas, nem nas propagandas, telenovelas ou outdoors, nem entre professores, jornalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores.

Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania – moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade –, a maior parte dos brasileiros é peça descartável da engrenagem que movimenta a sétima maior economia do planeta: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras de todo o país. Habituados a sermos tratados como cidadãos de segunda classe, que têm apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não-pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…

Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – o semelhante torna-se o inimigo.

A taxa de homicídios no Brasil chega a 27 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 50 mil pessoas mortas por ano, número três vezes e meia maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em comunidades e bairros da periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.

Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de mulheres vítimas de violência doméstica, taxa média de 4,5 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, com um saldo, na última década, de 50 mil mulheres mortas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados.

Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. Embora não existam estatísticas seguras, projeções apontam que são assassinados mais de 200 homossexuais por ano no país.

E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução – 70% abandonaram a escola em seus primeiros anos.

O sistema de ensino tem sido um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do fosso entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 10% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.

As escolas públicas de ensino básico, além de funcionar, muitas vezes, em ambientes degradados, contam com professores mal remunerados e principalmente desmotivados, atormentados pelo medo, medo dos alunos, medo dos pais dos alunos – a ditadura militar conseguiu destruir na sociedade civil a crença na importância da autoridade. Quem pode, foge do sistema público e matricula os filhos em estabelecimentos privados, cujas mensalidades podem ultrapassar os 1,5 mil dólares.

Inversamente, as melhores universidades são públicas. Só que, para ter acesso a elas, existe uma porta estreita por onde entram somente os mais bem preparados, os alunos oriundos das melhores escolas particulares, os filhos dos ricos, portanto… Para os que frequentaram estabelecimentos públicos restam as universidades particulares, em geral bem ruins, que representam cerca de 80% do sistema de ensino superior… Ou seja, apesar do louvável esforço para implementar cotas raciais e sociais, as universidades públicas continuam território exclusivo da parcela mais endinheirada da população… E, numa equação incompreensível, constata-se que o dinheiro público financia universidades gratuitas de boa qualidade para os ricos, e, por meio de bolsas, financia universidades privadas de má qualidade para os pobres…

A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente cinco bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, e em menor escala por administrações estaduais e municipais, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. Mais da metade deste volume se refere a livros didáticos, científicos, técnicos, profissionais e religiosos. No entanto, o brasileiro continua lendo pouco, em média menos de dois títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 85 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.

Mas, temos avançado. A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria. Desde 2002, a proporção de pobres caiu de 35% para 25%, enquanto a composição da classe média subiu de 44% para 52% do total da população. O fato de 42 milhões de pessoas terem ascendido socialmente na última década é o que despertou a atenção do mundo inteiro, impressionado com o dinamismo da economia e as possibilidades de realização de negócios.

No entanto, inegável também, infelizmente, que questões cruciais de fundo estrutural não foram sequer abordadas. A indiscutível importância, por exemplo, das bolsas-família, que atendem cerca de 14 milhões de famílias; das bolsas-escola, que atendem um milhão de estudantes de ensino superior; ou das cotas raciais e sociais para ingresso nas universidades públicas, apenas maquiam o imenso abismo que separa ricos e pobres. Todo o esforço tem sido no sentido de criar um paliativo regime de transferência de renda e não um efetivo sistema de distribuição de renda, necessário, urgente, fundamental.

Assim, continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de poucos. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos a burlar as leis.

A corrupção, cujo custo anual alcança cerca de 2% do total do PIB, é uma praga que atinge toda a sociedade, e não somente a classe política, como gostamos de enfatizar. Herança de uma certa mentalidade colonial, que toma como privado o bem público, que despreza o valor do trabalho e que exerce o poder levando em consideração apenas os interesses pessoais, a cultura da corrupção contamina as instituições federal, estadual e municipal, contagia os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, infecciona o tecido social. O chamado “jeitinho brasileiro”, do qual muitas vezes nos orgulhamos, nada mais é que uma maneira de cometer ilegalidades no dia a dia, envolvendo dinheiro, tráfico de influência ou troca de favores.

Nós somos um país paradoxal.

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.

Agora, somos a sétima economia do planeta.

E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos…

Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região paradoxal situada na periferia do mundo, escrever em português-brasileiro para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?

Eu acredito, talvez até romanticamente, no papel transformador da literatura.

Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.

Luz na escuridão
Marcelo Moutinho, cronista, contista, romancista e autor de literatura infantil:

“Lancei em maio passado a seleta de crônicas A lua na caixa d’água e tenho outros três projetos em andamento. O primeiro sairá até o fim deste mês pela editora Malê, a antologia Contos de Axé – 18 histórias inspiradas nos arquétipos dos orixás. Minha ideia inicial era fazer um trabalho solo, o que levaria alguns anos. O recrudescimento brutal da violência contra os terreiros – uma violência que, vale dizer, é também simbólica – acabou por trazer um senso de urgência ao projeto. Então optei pela coletânea. A obra reúne 18 autores, de diferentes gerações, estilos e gêneros, vindos de vários cantos do país. Com o livro, pretendo ajudar a iluminar, a partir da ficção e sem pretensões didáticas, essa mitologia de admirável força alegórica, mística e literária, que infelizmente costuma ser ignorada no Brasil, embora seja tão definidora de nossa gênese. Em outubro, publico pela editora Oficina Raquel meu segundo infantil: Mila, a gata preta. E atualmente trabalho também na pesquisa para uma futura biografia da vedete Zaquia Jorge. A artista brilhou no teatro de revista, nas chanchadas, foi pioneira ao abrir um teatro fora das áreas de elite do Rio de Janeiro e virou tema de uma canção de imenso sucesso e enredo de escola de samba. Uma trajetória admirável e hoje praticamente desconhecida no Brasil”.

Parachoque de caminhão
“Preconceitos são mais difíceis de erradicar num coração cujo solo nunca foi revirado ou fertilizado pelos estudos; eles crescem ali, firmes como ervas daninhas em meio a pedras.”
Charlotte Brontë (1816-1855)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Manoel de Barros
(Cuiabá, MT, 1916 – Campo Grande, MS, 2014)

Biografia do Orvalho (11)

A maior riqueza do homem é sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou — eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(Retrato do artista quando coisa, 1998)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho