Conversa com Natalia Borges Polesso
1.
Carola: Você vinha e aí você não veio. Você ia para um evento em Frankfurt e a gente tinha te convidado para uma leitura aqui, na universidade. Tenho a sensação de que é possível cristalizar este ano nessa frase: você vinha e aí você não veio. Algo em suspenso. Viagens que íamos fazer, pessoas que iam chegar, acontecimentos, gestos interrompidos. Tenho vontade de escrever sobre isso, sobre o ano que não aconteceu, mesmo sabendo que não sou capaz.
Natalia: Pois é, eu ia e não fui. Era pra eu estar em. E posso completar com uma série de lugares. Me sinto frustrada. Eu e um monte de gente, né? Mas a frustração é algo contornável, habitável até. Lógico que temos outras preocupações no momento. É que por aqui o peso da realidade esmagou muitos sonhos, adiou planos e matou gente. São questões pessoais, políticas e sociais dessa pandemia e das consequências de sua terrível gestão pelos governos.
Carola: Sim, no Brasil a situação é tão assustadora, e ao mesmo tempo, parte da longa noite dos 500 anos. Tenho pensado muito num (anti) poema de Nicanor Parra. É sobre o Chile, mas poderia ser qualquer lugar na América Latina. Os últimos versos ficam ressoando…
Chile
É engraçado ver os camponeses de Santiago do Chile
de cenho franzido
ir e vir pelas ruas do centro
ou pelas ruas dos arrabaldes
preocupados-lívidos-mortos de susto
por razões de ordem política
por razões de ordem sexual
por razões de ordem religiosa
dando como certa a existência
da cidade e de seus habitantes:
embora esteja provado que os habitantes ainda não nasceram
nem nascerão antes de sucumbir
e que Santiago do Chile é um deserto.
Acreditamos ser país
e a verdade é que somos apenas paisagem.
Natalia: como disse a Angélica Freitas, em um dos poemas de seu livro novo, Canções de atormentar:
“o meu país era uma pamonha
que um alienígena esfomeado
pôs no micro-ondas”.
queime-se.
é um epitáfio possível.
2.
Carola: Nestes últimos tempos me pergunto constantemente, para que serve a literatura? Qual é o seu lugar?
Natalia: Eu também tenho me perguntado isso com mais frequência. E às vezes bate um desânimo, porque eu penso que há coisas mais urgentes, mais práticas e mais úteis, do que a arte. Contudo, também é necessário elaborar. Ensaiar um registro, nem que seja pra consultas futuras. Pensar esse tempo e esse lugar. Como chegamos aqui? Acho que essa pergunta foi o guia do livro que entreguei no início do ano (que será publicado somente em 2021). De algum modo, essas inquietações vazam pro nosso trabalho. Pensando em como ser realmente contemporânea, em como criar esse atrito com o tempo, em como conseguir fazer, no intervalo das luzes, alguma captura ou dar algum sentido a esse amontoado de imagens e sensações que a gente chama de mundo ou de vida, parece que encontramos um propósito pra arte (se precisamos de um). Ao mesmo tempo, essas são inquietações que moram em mim, que fazem parte de quem sou e do meu desejo de habitar o mundo.
Tenho aberto esse arquivo todos os dias; lido e relido. Hoje é uma segunda-feira e o dia começou pesado, porque sinto ainda um enjoo das imagens dos fundamentalistas religiosos, sádicos, pedófilos, protestando na porta do hospital em Recife. Volto a me perguntar como chegamos neste ponto? Corri os olhos numa reportagem que dizia serem mais de 600 casos como o desta menina por ano no Brasil. É terrível e ordinário. Estamos anestesiadas pela violência. É um mecanismo. Ou a gente morre.
Carola: Eu acredito muito na literatura (uma espécie de fé, eu diria). Acho que ela pode dar voz a quem não costuma ser ouvido, contar histórias que ninguém contou, e também pode nos ajudar a pensar o que ainda não fomos capazes de imaginar, essa possibilidade em nós. Ler e escrever literatura é pra mim uma forma de pensar o futuro, talvez (mas não sempre) um outro futuro.
“Como chegamos aqui?” É a pergunta que de um modo ou de outro todos deveríamos nos fazer (fiquei curiosa pra saber do seu novo livro…). Acho que é uma pergunta-chave, porque ela nos tira dessa ideia dos acontecimentos que surgiram de repente, no nada. Nada surgiu do nada, nem o vírus, nem a injustiça, nem a morte. Mas ao mesmo tempo em que te digo que acredito na literatura como forma de construir mundos (passados e futuros), há momentos em que me vem a sensação de que até isso tem um limite. O caso dessa menina, e de todas as meninas que ela representa, são tantas, é um desses momentos em que eu sinto que a palavra não dá conta. Há momentos, de imenso horror, em que a palavra não dá conta.
3.
Carola: Ano passado, no meu seminário sobre feminismo na América Latina, lemos um conto seu. Flor, flores, ferro retorcido, sobre essa menina que descobre a palavra “machorra” e vai atrás do seu significado, pra mim é um conto sobre a descoberta das palavras que é também a descoberta do mundo e dos afetos. Poucas vezes tive uma visão tão clara da potência da literatura, não só da potência artística, simbólica ou espiritual, mas da potência num sentido prático mesmo, de vida. Eu tinha dado uma aula inteira sobre feminismo, e depois lemos o seu conto em sala de aula, comentamos, conversamos, e eu percebi que nada do que eu pudesse dizer ali, nenhum conhecimento, nenhuma teoria, nenhuma palavra seria tão transformadora como o seu conto. Falar nunca é o suficiente. A literatura é um “saber dizer” porque diz muito mais do que diz.
Natalia: Carola, primeiramente, obrigada pelas palavras, fico emocionada. Esse conto é realmente sobre uma busca íntima. Nem é sobre as respostas (e no decorrer do conto, a personagem obtém várias respostas pra sua questão). Ao contrário, é exatamente sobre a procura e uma procura genuína, uma curiosidade que move. É nesse movimento que estava meu interesse. Tem uma citação do Rilke, que eu gosto muito e que diz be patient toward all that is unsolved in your heart and to try to love the questions themselves like locked rooms and like books that are written in a very foreign tongue (eu só tenho a edição em inglês, mas podemos buscar uma tradução). Foi essa citação que me motivou na escrita deste conto. O Barthes, em Le degré zero de l’ecriture, diz que a escrita é um ato de solidariedade histórica, uma função que tenta estabelecer uma relação entre a criação e sociedade, que é a forma capturada em sua intenção humana de se embrenhar nos discursos históricos. Ou quase isso. Eu concordo. Quando eu escrevo em sinto um profundo desejo de que as palavras e as questões que me são caras para viver habitem também o mundo e possam ser compartilhadas e revividas.
Carola: Que bonita essa origem do teu conto. Sempre me interessei mais pelas perguntas do que pelas respostas, até porque não acredito em respostas definitivas, únicas. A resposta deixa sempre algo sem resposta. Me lembrei daquele livro do Neruda El libro de las preguntas: “Hay algo más triste en el mundo que un tren inmóvil en la lluvia?”.
4.
Carola: Já conversamos algumas vezes sobre a Gloria Anzaldúa, ela se torna cada vez mais importante para mim, e acho uma pena ela não estar publicada no Brasil. Gosto especialmente do Light in the dark/Luz en lo oscuro, no qual ela desenvolve o conceito de “Neplanta”, que seria uma espécie de entre-lugar, nas palavras dela: Perceiving something from two different angles creates a split in awareness that can lead to the ability to control perception, to balance contemporary society’s worldview with the nonordinary worldview, and to move between them to a space that simultaneously exists and does not exist. I call entering this realm “neplanta” — the Nahuatl word for an in between space, el lugar entre medio. Anzaldúa cria assim, ao nomeá-lo, um lugar de existência possível.
Natalia: Qualquer pessoa não branca e/ou não heteronormativa e/ou não católica-cristã vai habitar um vão colonial e vai ser atingida com mais ou menos intensidade por uma série de violências a depender de suas intersecções. Cada vez mais eu entendo que a experiência colonial é uma violência constante, prolongada, desumana. Mas é também ela que nos obriga a criar esses espaços, a nomeá-los até, para que sejam mais palpáveis em sua existência, para que possamos respirar por um momento. E nós sabemos quem sofre mais com as consequências dessa violência constante.
Eu me interesso muito em questões geográficas e quando digo geográfica, quero dizer de estar no mundo, de criar tensões ao habitar o mundo, ao criar deslocamentos. E eu creio que seja importante mesmo pensar geograficamente, quero dizer, pensar nos espaços do mundo e nos espaços que construímos ficcionalmente, a partir do nosso estar. Eu acho que observar a literatura desse modo, pode ser muito revelador.
Carola: Nossa geografia oficial é tão filha do colonialismo, que mal conseguimos nos nomear. América Latina cuja origem é Américo Vespúcio. Latina: palavra filha de outras colonizações. América do Sul, que exclui o México, América do Norte, que também exclui o México. América, continente que exclui todos os povos originários. América, que nem mesmo ao continente pertence, apropriação de um único país. Muitas vezes me perguntam sobre a relação do Brasil com a América Latina, e eu tento explicar que o Brasil fica na América Latina. Enfim, considerações que não têm nada a ver com o seu comentário, mas eu precisava falar (risos).
“Quando eu escrevo em sinto um profundo desejo de que as palavras e as questões que me são caras para viver habitem também o mundo e possam ser compartilhadas e revividas.”
5.
Carola: No livro mais recente de Judith Butler, há um ensaio em que ela fala sobre a distinção que fazemos entre aqueles que são sujeitos e merecem o luto e aqueles que estão no lugar de objeto, e para os quais não há luto. Ela começa o texto com uma citação do Cortázar, então cito aqui Butler citando Cortázar: El lenguaje está ahí y es una gran maravilla y es lo que hace de nosotros seres humanos, pero ¡cuidado! antes de utilizarlo hay que tener en cuenta la posibilidad de que nos engañe, es decir, que nosotros estemos convencidos de que estamos pensando por nuestra cuenta y en realidad el lenguaje esté un poco pensando por nosotros, utilizando estereotipos y fórmulas que vienen del fondo del tiempo y pueden estar completamente podridas. Estamos pensando por nossa própria conta? Questionar quem somos, o que vivemos, todos os dias, exige coragem.
Natalia: Se pensar é um exercício diligente e, ao contrário do que se possa imaginar, altruísta.
6.
Carola: Talvez pensar por conta própria exija viver por conta própria.
Natalia: Não creio. Penso que é justamente o contrário. Para pensar por conta própria é preciso antes de tudo compartilhar algo íntimo com o outro.
Carola: Sim com certeza, é lindo isso que você diz, para pensar por conta própria é necessário compartilhar algo íntimo com o outro. Às vezes algo que está além das palavras. Mas eu pensei em outro significado, “viver por conta própria” como a capacidade de viver segundo o próprio desejo, e não o desejo imposto pelos demais, pela religião ou pelo capitalismo. Penso muito nisso, no quanto o desejo é sequestrado pelo sistema capitalista, um desejo que vira consumo, morte, destruição.
Natalia: Isso sim. E nesta situação em que estamos metidas, mirar o desejo é uma atividade que exige dedicação e coragem mesmo. Porque… nossa… pode ser muito perigoso. Esses dias me peguei pensando na morte como plano de vida, entende? É tão triste. O que nos espera? Converso bastante sobre o desejo e esses dias uma amiga disse que essa pandemia nos tirou os momentos de êxtase, de festa, de estarmos menos tensas, porque é uma constante tentativa de manter a sanidade, de manter a lógica, de manter a coerência. Não dá pra ficar de boa. Isso cansa. Isso mata também. Mata a gente ou mata algo na gente.
7.
Carola: Deleuze e Guattari, em Kafka, por uma literatura menor: “A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político. Nas ‘grandes’ literaturas, pelo contrário, a questão individual (familiar, conjugal, etc.) tende a juntar-se a outras questões igualmente individuais, em que o meio social serve de ambiente e de fundo, de tal maneira que nenhuma das questões edipianas é indispensável em particular, nem absolutamente necessária, mas todas elas fazem ‘bloco’ num vasto espaço. A literatura menor é completamente diferente: o seu espaço, exíguo, faz com que todas as questões individuais estejam imediatamente ligadas à política. A questão individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior”.
Natalia: Vou chamar de volta aqui na conversa a Gloria Anzaldúa. No ensaio To(o) Queer the writer — Loca, escritora y chicana, ela faz uma bela discussão sobre este nomear-se, adjetivar-se e sobre como isso, a depender de quem faz as marcações pode ser uma coisa boa ou ruim. Eu acho que esse debate na literatura é sempre longo e cheio de complexidades (o ensaio é inclusive contraditório em seu interior). Eu acho importante se nomear, se posicionar quanto ao lugar de existência a partir de onde produzimos, mas também acho importante sinalizar que isso não é um aprisionamento.
Carola: Ah, essa conversa dá uma conversa por si só, um livro, um tratado filosófico, um poema…
Natalia: Vou deixar uma outra provocação para essa conversa futura, tenho escrito pequenos textos no Instagram a partir de fotos que meu celular destaca aleatoriamente, desde que sejam externas. Isso porque eu comecei a sentir muita falta de sair, de andar por aí, viajar, saudades do antes de tudo isso. Aí pensei nas fotos dos lugares, ao menos no feed. Pois, eis que meu celular destaca uma foto de um trabalho de Adrian Piper, que vi no MoMa em 2018. É uma série de retratos em que o rosto das pessoas está borrado, parece mesmo que foram apagados com uma borracha, e sobre o borrão há sempre a mesma frase: everything will be taken away. Na exposição, lembro que na sequência, a gente podia enquadrar nosso próprio rosto num espelho com a mesma frase. Pensei em tirar uma foto, até peguei o celular, mas desisti.
8.
Carola: Gosto muito de pensar em palavras que só existem em outros idiomas. Minha palavra preferida em alemão é Fernweh, significa saudades de um lugar que não conhecemos e que está longe. Bom, saudades é a tal palavra que só existe em português. Faço coleção dessas palavras. Tenho um livro que lista uma série delas, entre as minhas preferidas: Hanami: viagem feita para observar o florescer das cerejeiras.
Natalia: Só consigo lembrar de Jabberwocky, acho que o poema mais famoso de Lewis Carrol, de que gosto muito: Twas brillig, and the slithy toves/ Did gyre and gimble in the wabe;/ all mimsy were the borogoves,/ And the mome raths outgrabe. Posso recitá-lo todinho de cor.
Carola: Adoro. Fiquei pensando, sei tão poucos poemas de cor, sinto falta. Vou aprender alguns e recitar durante o dia enquanto lavo os pratos, passo o aspirador pela casa.
9.
Carola: Drummond escreveu um livro de aforismos O avesso das coisas, sobre saudades ele diz: “Também temos saudades do que não existiu/ e dói bastante”. Ah, e ele escreveu também (meu preferido): “O sol está a nosso serviço, porém não nos obedece”.
Natalia: Eu sinto Fernweh do Brasil que imaginei pro futuro.
10.
Carola: Acabo de descobrir que o meu exemplar do Amora sumiu da minha estante, não me lembro mais para quem emprestei, se é que eu emprestei para alguém. Mas o fato é que sumiu. Fico ao mesmo tempo irritada (tenho muito apego a certos livros) e contente de alguém ter carregado consigo essa leitura. Não deixa de ser um ato político.
Natalia: Eu tenho feito algumas promessas a mim mesma nessa quarentena, acho que o isolamento tem me feito pensar em alguns limites, digo, tem me feito pensar em proposições que antes eu não pensaria. Eu sou muito programática e planejada. Tenho uma organização particular. Não digo, metódica, mas bem particular. E gosto de projetar com segurança, mas tenho feito esse exercício com mais elasticidade. O que quero dizer com toda essa explicação é que pensei agora em te levar um Amora, quando der, onde for.
Carola: Sim! Quando der, onde for.
Natalia: Combinado.