(13/11/20)
VocĂŞ que agora me lĂŞ, sendo certamente mais inteligente que eu, talvez já tenha encontrado a resposta para uma dĂşvida que me tira o sono. Todos os dias somos expostos a dezenas de bundas desnudas – em sites noticiosos, leitor/leitora cheio de malĂcia! –, exibidas de todas as formas e jeitos, e, no entanto, Ăł Deuses da PudicĂcia (que palavra mais besta!), os tais “meios de comunicação” insistem em chamar, castamente, a dita cuja de “bumbum”…
Esse paradoxo diz muito sobre nosso caráter. Somos hipĂłcritas, os brasileiros, a verdade Ă© essa. As crianças sĂŁo expostas Ă pornografia mais escatolĂłgica na internet, mas nos indignamos quando um personagem de telenovela diz (será que diz?) “filho da puta” no horário nobre. Dias atrás, aqui mesmo nesse espaço, evitei, ironicamente, escrever por extenso a palavra b*****a para nĂŁo ferir olhos e ouvidos mais melindráveis…
Mas, venhamos e convenhamos, o que esperar de um paĂs liderado por um energĂşmeno – eleito por 58 milhões de energĂşmenos, nunca nos esqueçamos – que faz da hipocrisia uma plataforma de governança? O nosso EnergĂşmeno-Mor evoca a ordem militar e foi um oficial insubordinado; evoca o modelo de famĂlia tradicional e tem cinco filhos de trĂŞs casamentos diferentes; evoca a religiĂŁo e ora se apresenta como catĂłlico, ora como evangĂ©lico; vende-se como paladino da moralidade e enrosca-se, ele e sua famĂlia, em denĂşncias de corrupção e de envolvimento com milicianos; retrata-se como antipolĂtico e ganhou a vida como polĂtico profissional – carreira, aliás, abraçada por seus trĂŞs filhos adultos, 01, 02 e 03 e, muito em breve, por 04 – a menina nĂŁo, porque mulher existe para ser bela, recatada e do lar, segundo o nosso ex-presidente Michel Temer…
Mas Bolsonaro Ă© sĂł o representante da nossa população de catĂłlicos antiabortistas cujas amantes e filhas praticam aborto em clĂnicas clandestinas, mas seguras; de evangĂ©licos que trazem uma bĂblia na mĂŁo direita, um fuzil (metafĂłrico ou real) na mĂŁo esquerda; de juĂzes que desrespeitam as leis; de pessoas que entram para a polĂtica visando roubar o máximo no menor tempo possĂvel para que, quando forem eventualmente pegos, já terem garantido um patrimĂ´nio para seus descendentes; de uma elite branca que veste camisa verde-amarela para mostrar o profundo amor ao Brasil – e mora em Miami; de bundas que sĂŁo apresentadas em pĂşblico como “bumbum”…
Luz na escuridĂŁo
Adriana Lunardi, contista, romancista, roteirista: “Tento avançar na histĂłria de uma mulher que teve os dentes, as mĂŁos e os joelhos quebrados. Quando ainda estava ferida, foi roubada, amordaçada e violada. O pano de fundo Ă© um golpe polĂtico que depĂ´s a presidente de uma repĂşblica sul-americana. Tanta violĂŞncia acabou por gerar uma lesĂŁo cognitiva em minha personagem e, como consequĂŞncia, a Ăşnica figura de linguagem que ela reconhece, agora, Ă© a ironia. Para encontrar algum sentido nesse mundo pĂłs-maelstrom, ela observa tudo com uma curiosidade cientĂfica e faz anotações. As palavras Ă s vezes nĂŁo dizem nada. Mesmo o dicionário oferece pouca ajuda. Ela nĂŁo sabe se concluirá um relato. NĂŁo sabe se a escrita Ă© possĂvel sem metáforas, alusões ou metonĂmias. NĂŁo sabe mais o que Ă© considerado literatura. É um livro de nĂŁo-ficção”.
Parachoque de caminhĂŁo
“Não evocamos uma coisa quando a chamamos por seu nome. As palavras, apesar de as conhecermos desde a infância, não sabemos o que são.”
Henri Barbusse (1873-1935)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Gilka Machado
(Rio de Janeiro, RJ, 1893 – Rio de Janeiro, RJ, 1980)
Ser mulher…
Ser mulher, vir Ă luz trazendo a alma talhada
tentar da glĂłria a etĂ©rea e altĂvola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insĂpida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansĂŁo do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
(Cristais partidos, 1915)