🔓 Democracia em causa

Qual o papel da cultura em tempos de obscurantismo e desesperança?
Ilustração: FP Rodrigues
10/09/2021

O que se segue é o texto, com ligeiras modificações, da abertura da 11ª Conferência Internacional da American Portuguese Studies Association (APSA), proferida em 18 de outubro de 2018, nas dependências da Universidade de Michigan, em Ann Arbor, Estados Unidos, sob o tema Democracy in question: o que faz, o que pode a cultura?. Creio que, apesar das mudanças provocadas, principalmente pela pandemia, ele ainda é válido como proposta de reflexão.

“Antes mesmo de iniciar qualquer argumentação a respeito do tema proposto, Democracy in question: o que faz, o que pode a cultura?, devo me perguntar, como muitos de vocês, provavelmente, se perguntaram: afinal, qual a relação entre a crise do sistema de representação democrática no mundo e um congresso destinado a discutir as manifestações da cultura em um idioma específico, no caso, a língua portuguesa? E a resposta, pelo menos para mim, é transparente como água de um rio em sua nascente: sem a liberdade proporcionada pela democracia, a cultura não se consubstancia em discurso, e, por consequência, um congresso como esse teria sua existência ameaçada. Explicitada minha crença, que se alicerça no conhecidíssimo aforismo sugerido pelo político britânico Winston Churchill, ‘Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos’, voltemos, então, a trilhar o caminho principal.

O título da conferência não deixa margem à dúvida: a democracia está em crise. Não é uma pergunta, é uma afirmação. O que se questiona é qual o papel da cultura na preservação do patrimônio humanístico acumulado ao longo dos tempos. Analisemos, portanto, a assertiva que guia nossa conversação. O capitalismo, surgido efetivamente no bojo da Revolução Industrial do século 18, a partir do capital acumulado ao longo dos dois séculos anteriores, na chamada Era das Grandes Navegações, foi paradoxalmente um grande impulsionador da democracia. Dados do The Polity Project, do Center for Systemic Peace, mostram que entre 1800 e 2016 o número de regimes políticos considerados democráticos subiu de zero em 22 países pesquisados para 97 em 167 países pesquisados. Não à toa, os momentos de recuo do número de países governados por sistemas democráticos coincidem com os períodos pré-guerra.

O capitalismo tem como uma de suas mais impressionantes características a capacidade de se renovar constantemente, muitas vezes a partir de suas próprias contradições, transformando tudo em mercadoria, ou seja, em dinheiro e poder. As drogas, por exemplo, que acompanharam a trajetória da Humanidade desde suas origens, só passaram a ser consumidas em massa a partir de sua associação à imagem dos jovens que as usavam como forma de contestação ao próprio capitalismo na década de 1960. Daí para a frente, tornaram-se o mais lucrativo negócio da atualidade, movimentando estimados 320 bilhões de dólares por ano. (Em escala bem menor, vale a pena lembrar a utilização do rosto do líder revolucionário Che Guevara em camisetas, broches, ímãs de geladeira, cartazes, chaveiros, copos, canetas, e tantas outras tralhas, onipresente em todas as partes do mundo…)

De quando em quando, no entanto, o mecanismo de funcionamento do sistema entra em colapso, já que a possibilidade de ampliação do número de consumidores não é ilimitada. Nestes momentos, que são os temerosos períodos de crise, as empresas – a cujos interesses, a rigor, os estados nacionais estão submetidos – lançam mão de suas prerrogativas e pressionam os governantes por uma solução rápida para o retorno da circulação de capital: a guerra. A guerra não só aumenta de maneira considerável a venda de armas – algo em torno de 65 bilhões de dólares anuais, em tempos de paz –, mas principalmente mobiliza, em uma segunda fase, a construção civil, cuja cadeia produtiva envolve todos os demais setores, a indústria, o comércio e os serviços. De quebra, elimina os excedentes populacionais, reequilibrando oferta e procura.

Ciclicamente, o mundo entra em conflito e dele o sistema capitalista sai renovado e fortalecido. As guerras napoleônicas, entre 1792 e 1815, que opuseram a França ao resto da Europa, terminaram com o Congresso de Viena, que no início do século 19 impôs ao planeta a chamada Pax Britannica, garantindo à Inglaterra o controle das rotas marítimas e a livre circulação de seus produtos industrializados por todos os continentes. Setenta anos depois, em 1885, a Conferência de Berlim repartiu, de maneira arbitrária e violenta, a África e a Ásia entre as principais potências europeias, com objetivo de garantir o fornecimento de matérias-primas a baixos preços e ampliar o mercado consumidor de artigos manufaturados. O despeito da Alemanha, que se sentiu desfavorecida nesta divisão, aliado ao crescente nacionalismo dos países eslavos subjugados ao Império Austro-Húngaro, foi uma das causas geradoras da I Guerra Mundial, que colocou no campo de batalha cerca de 70 milhões de soldados. O resultado foram 10 milhões de mortos – entre civis e militares – e 20 milhões de feridos, e o surgimento da União Soviética, que provocou uma nova correlação de forças na geopolítica internacional.

Menos de 21 anos após o término da I Guerra Mundial explode a II Guerra Mundial, motivada, por um lado, pelo impasse provocado por problemas não resolvidos na conflagração anterior, e, por outro, pelos conflitos de interesses econômicos, sob o verniz de posições ideológicas. O nacional-socialismo do ressentido Adolf Hitler, e sua absurda concepção de supremacia ariana, o obscurantismo autoritário estalinista e os chamados “paladinos da democracia” (os países europeus e os Estados Unidos) lutavam para ampliar suas áreas de influência política – a política anda sempre a serviço da economia. Terminada a guerra com a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) – 66 milhões de mortos, entre civis e militares, 35 milhões de feridos –, os Estados Unidos patrocinaram o Plano Marshall para reerguimento dos países europeus – menos aqueles sob influência soviética. Foram investidos cerca de 132 bilhões de dólares em alimentos, fertilizantes, matérias-primas, produtos semi-industrializados, combustíveis, veículos e máquinas – 70% desses bens de procedência norte-americana.

Os Estados Unidos saíram da guerra fortalecidos política e economicamente. Junto com seus aliados europeus (incluindo Alemanha e Itália, derrotados na guerra), de um lado, e a União Soviética, de outro, redesenharam o mapa-múndi, inaugurando a Guerra Fria – que, a partir da década de 1950, contaria com mais um protagonista, a China, fundada no absolutismo sanguinário maoísta. Passaram-se mais de 70 anos desde então – um dos maiores períodos de “paz” da história recente da Humanidade. Houve guerras regionais – Coreia, na década de 1950; Vietnã, na década de 1960; Bósnia, na década de 1990, entre vários outros conflitos menores na África, Ásia e América Latina -, mas nenhum deles opôs diretamente as forças armadas das grandes potências. Os embates da segunda metade do século 20 foram, de certa maneira, terceirizados: a indústria armamentista disponibilizava o material bélico e os países em litígio ofereciam o campo de batalha e os soldados.

Agora observamos o mundo novamente em turbulência. O cenário coloca em rota de colisão os interesses econômicos dos grandes conglomerados norte-americanos; os interesses da Rússia, ansiosa por recuperar o espaço geopolítico ocupado pela antiga União Soviética; e os interesses da ditadura chinesa, que, com seu capitalismo de estado, baseado em salários irrisórios, desrespeito aos direitos humanos e ambientais, inunda o mundo com seus artigos baratos, causando impacto tanto na economia norte-americana quanto na geopolítica russa. Observamos ainda o crescimento preocupante do discurso xenofóbico e ultranacionalista da extrema-direita em todas as partes do mundo; a instabilidade da representação democrática na América Latina, sufocada pela incompetência, corrupção e populismo; a derrocada dos países africanos, sucumbidos à corrupção, ao autoritarismo e aos conflitos étnicos e religiosos; a crise humanitária nos países do Oriente Médio e Ásia Central; o perigo atômico encarnado no mimado ditador norte-coreano Kim Jong-un; e o fenômeno típico do nosso século, o recrudescimento dos atentados terroristas fomentados pelo fundamentalismo islâmico.

Isso, desde um ponto de vista da macroestrutura. Quando pensamos em seres humanos, com rosto e nome, temos que 815 milhões de pessoas passam fome no mundo e que 33% de toda a população urbana do planeta vive em favelas. Ao mesmo tempo, as 85 pessoas mais ricas do mundo possuem o equivalente ao patrimônio das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres – ou, em outras palavras, 1% das famílias mais ricas do mundo são donas de quase metade do total da riqueza do planeta. Além disso, nunca houve, na história da Humanidade, um contingente populacional em trânsito tão grande como agora. Uma pessoa em cada grupo de 113 é solicitante de refúgio, deslocado interno ou refugiado. São 65 milhões de pessoas em movimentação provocada por guerras ou conflitos, metade delas crianças e adolescentes.

Infelizmente, a tudo isso devemos acrescentar um dado novo, específico da era industrial, a iminência de uma catástrofe ambiental sem precedentes, apesar do chamado Acordo de Paris, documento com o qual mais de 130 países se comprometeram em baixar os níveis de poluição emitida por fábricas e veículos e reduzir o número de desmatamentos. Ao longo do século 20, a temperatura média no planeta aumentou 0,74 graus, e as consequências imediatas do aquecimento global já podem ser observadas: intensificação de fenômenos meteorológicos (temperaturas extremas, tempestades severas, inundações, vendavais, secas prolongadas), elevação do nível do mar, extinção de espécies vegetais e animais. O resultado a médio prazo será a diminuição drástica do acesso à água potável e o encolhimento da produção de alimentos, a ampliação do número de doenças infectocontagiosas, e o acirramento dos conflitos provocados pela obtenção dos escassos recursos naturais renováveis e não renováveis.

Ou seja, temos hoje um cenário mundial de desequilíbrio ambiental, desordem econômica, desorganização social e instabilidade política, um quadro, desgraçadamente, muito pouco favorável ao sistema de governação democrática. Para seu exercício, a democracia exige algum desapego material, certa tolerância em relação às diferenças, um determinado senso de justiça, um afluxo ao interesse comum. A democracia subsiste, portanto, alicerçada em uma frágil harmonia de forças divergentes. Basta um pequeno tremor para vermos emergir a violência do nosso egoísmo, do nosso primitivismo, da nossa barbárie. Quando nos sentimos ameaçados – de forma real ou simbólica –, e a ameaça advém da sensação de desconcerto do mundo, aflora o nacionalismo, revela-se a xenofobia, consolida-se o discurso autoritário e beligerante que conforta o pensamento medíocre.

E se admitimos que a democracia encontra-se, neste momento, em crise nos ditos países do Primeiro Mundo, onde existem claros mecanismos de salvaguarda dos direitos individuais e coletivos, como poderes independentes, imprensa ativa, eleições livres, educação de qualidade, o que pensar daqueles lugares onde imperam a corrupção, a censura, a ignorância, a arbitrariedade, como é o caso da maioria dos países que fazem parte da chamada “lusofonia”? A revista inglesa The Economist elabora anualmente um Índice de Democracia, que leva em consideração cinco itens: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Em 2019, Portugal aparecia em 22º lugar entre 167 países pesquisados, o que lhe conferia o título de “plena democracia”. Depois, surgem Cabo Verde em 30º, Timor-Leste em 41º, e Brasil em 52º, considerados “democracias imperfeitas”. Angola (119º) Moçambique (120º) e Guiné-Bissau (148º) pertencem ao trágico clube dos países de regimes autoritários. São Tomé e Príncipe não participa da avaliação.

Cavouquemos, então, um pouco mais, a terra lusófona para tentar encontrar as raízes do nosso pouco apreço pela democracia. Limitemo-nos à história política a partir do século 20. Agonizando desde os finais do século 19, a monarquia portuguesa sofre um revés com o assassinato de D. Carlos e do príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, em fevereiro de 1908, e a destituição de D. Manuel II, em outubro de 1910, quando é implantada a República. Um golpe militar põe fim ao instável regime democrático em 1926, instaurando a chamada Ditadura Nacional, que, a partir de 1933, dá lugar ao Estado Novo, liderado pelo patético celibatário Antônio de Oliveira Salazar, o “dinossauro excelentíssimo”, que durante 35 anos dirigiu o país com mão de ferro, transformando Portugal numa espécie de convento, cuja população chafurdava na pobreza, na ignorância, no atraso. O salazarismo, versão portuguesa do fascismo, só terminaria com a queda de Marcelo Caetano, que governou o país entre 1968 e 1974. A Ditadura Nacional e o Estado Novo se estenderam por 48 anos, o mais longo regime autoritário da Europa Ocidental no século 20. (Entre muitos outros, esse período está retratado em romances como O delfim, de José Cardoso Pires, A manta do soldado ou O vale da paixão, de Lídia Jorge, e Casas pardas, de Maria Velho da Costa).

Durante esse momento, Portugal ampliou sua presença em território de suas então colônias na África, que iam se tornando fundamentais para fornecimento de matérias-primas e alimentos, para venda de produtos manufaturados e para acumulação de capital por meio do uso de mão de obra dos ”contratados”, variação da escravidão como trabalho forçado, baseado em uma ideologia racista de superioridade dos brancos europeus, vigente até a Revolução dos Cravos. No início da década de 1960, as populações locais se insurgem contra o Estado Português e deflagram as chamadas guerras de libertação, que deixaram um total de 8.831 soldados e cerca de mil civis portugueses mortos e um número incalculável de vítimas africanas – os números variam de 100 mil a 300 mil. (Alguns livros de ficção refletem essa fase da história, como Os cus de Judas, de António Lobo Antunes, e A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge, ambos portugueses; ou Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira, e Mayombe, de Pepetela, ambos angolanos; e Nós matamos o cão tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, entre outros).

A reação aos horrores protagonizados pelos portugueses durante o período da guerra em África foi fundamental para a tomada de posição do oficialato das forças armadas, constituído primordialmente por capitães, que promoveram, com grande adesão popular, o golpe militar que pôs fim, de uma só vez, no dia 25 de abril de 1974, ao salazarismo e ao mais antigo império colonial da Europa. Ao longo de 1974 e 1975, o novo governo assinou acordos de paz com movimentos de libertação que redundaram na independência da Guiné-Bissau (setembro de 1974), Moçambique (junho de 1975), Cabo Verde e São Tomé e Príncipe (julho de 1975), Angola e Timor-Leste (novembro de 1975). A partir de então, Portugal iria cada vez mais se aproximar do restante da Europa, entrando para a comunidade econômica em 1° de janeiro de 1986 e aderindo à moeda única, o euro, em 1º de janeiro de 1999. O salto mais significativo dessa guinada talvez possa ser medido pelos números da educação: na época da Revolução dos Cravos, cerca de 25% da população adulta de Portugal (ou seja, uma em cada quatro pessoas acima dos 15 anos) era analfabeta – hoje, são menos de 5% os analfabetos, e o país apresenta os melhores rendimentos da Europa no Pisa, exame anual que avalia a qualidade do ensino em 70 países. (O Prêmio Nobel de Literatura para José Saramago, em 1998, de certa forma, antecipa, premonitoriamente, o ingresso de Portugal neste novo patamar).

No entanto, se por um lado a Revolução dos Cravos colocou Portugal nos trilhos que iriam desaguar na contemporaneidade, por outro, por meio de uma desastrosa política de descolonização, empurrou as antigas colônias para o inferno da guerra civil e provocou a volta forçada, de uma hora para outra, de 700 mil portugueses para a Metrópole (momento retratado pelo romance O retorno, de Dulce Maria Cardoso). O caso do Timor-Leste talvez tenha sido o mais dramático de todos, pois, apenas nove dias após a declaração de independência, o país foi invadido pela Indonésia, que manteve por quase 27 anos uma ocupação brutal e genocida, finda em maio de 2002. Calcula-se que a ocupação indonésia causou a morte de cerca de 100 mil timorenses, numa população total, na época, de menos de um milhão de habitantes. (História reconstruída por Luís Cardoso em O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação). Mas, se o caso de Timor-Leste foi o mais dramático, não foi o mais trágico.

Quando, no dia 11 de novembro de 1975, Agostinho Neto, líder do MPLA, que controlava o território ao redor de Luanda, proclamou a independência de Angola, outros dois grupos, o FNLA, de Holden Roberto, e a Unita, de Jonas Savimbi, instalados no interior, fizeram o mesmo, desencadeando uma bárbara guerra civil. O conflito extrapolava os limites do país. Na verdade, o campo de batalha angolano fazia parte do complexo jogo de xadrez da guerra fria, que opunha os interesses dos Estados Unidos e da União Soviética. O resultado foi um conflito que durou 27 anos e deixou como saldo cerca de 500 mil mortos e mais de um terço da população deslocada de seu local de origem. Ao fim dos combates, com a vitória do MPLA, em 2002, Angola era um país devastado.

Além das atrocidades cometidas contra a população civil por todos os envolvidos na guerra, um episódio emblemático marcou o desenvolvimento posterior da história de Angola. Em 27 de maio de 1977, Agostinho Neto decide expurgar uma parte do MPLA, acusada de “fraccionismo, desencadeando uma incansável perseguição aos militantes ligados ao ex-ministro do Interior, Nito Alves, que, julgados sumariamente por uma comissão revolucionária, são fuzilados, enquanto outros milhares eram mantidos presos e torturados em campos de concentração. A Anistia Internacional calcula entre 20 mil e 40 mil o número de assassinatos ao longo dos dois anos de expurgo, embora outras fontes falem em até 80 mil pessoas mortas ou desaparecidas, incluindo alguns dos melhores quadros da jovem intelectualidade angolana. (Comissão das lágrimas, do português António Lobo Antunes, e Estação das chuvas, do angolano José Eduardo Agualusa, são dos raros livros de ficção que tratam desse episódio).

Em 20 de setembro de 1979, José Eduardo dos Santos, então vice-primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores, instala-se no poder, com as bênçãos de Agostinho Neto, inaugurando uma cleptocracia que durará 38 anos. Nesse período, José Eduardo acumulou uma fortuna pessoal estimada em 20 bilhões de dólares – sua filha, Isabel dos Santos, foi considerada pela revista Forbes, a mulher mais rica da África em 2013, com uma fortuna estimada em três bilhões de dólares… Enquanto isso, 70% da população vive com menos de dois dólares por dia… De acordo com a Transparência Internacional, Angola ocupa o 142º lugar entre 167 países avaliados no ranking mundial de corrupção. Além disso, o país detém o quarto pior lugar no ranking do Índice de Progresso Social, que avalia itens como acesso a água potável, habitação, saúde e educação de 125 países. Por outro lado, Angola está entre os maiores consumidores per capita de champanhe do mundo…

Não foi muito diferente a situação de Moçambique. Dois anos após a declaração de independência, a Frelimo, liderada por Samora Machel, e a Renamo iniciaram uma violenta guerra civil, que durou 16 anos e deixou mais de um milhão de vítimas, além de outros 1,5 milhão de refugiados nos países vizinhos. Em 1992, foi assinado um acordo de paz que culminou em eleições gerais que deram a vitória aos partidários da Frelimo, que até hoje se mantém no poder. Em 2014, a Renamo contestou o resultado das eleições e o clima de tensão voltou a ameaçar a frágil estabilidade política. Além disso, há notícias de ações de fundamentalistas islâmicos no extremo-norte do país. (A história recente de Moçambique está retratada na obra de Mia Couto, Terra sonâmbula e O último voo do flamingo, de Paulina Chiziane, Balada de amor ao vento e Ventos do Apocalipse, e em Os sobreviventes da noite, de Ungulani Ba Ka Khosa).

Logo após a independência, a Frelimo criou “campos de reeducação”, ou seja, campos de concentração nos moldes maoístas, situados em regiões inóspitas no norte do país, que até 1984 acolheram prostitutas, dissidentes políticos, suspeitos de ligação com a administração portuguesa, alcoólatras, autoridades tradicionais (como curandeiros) e membros da confissão Testemunhas de Jeová. Estima-se que em 1980 havia cerca de 10 mil pessoas confinadas em 12 campos de reeducação. De acordo com testemunhas, no centro de Mtela, em Niassa, que agrupava os inimigos políticos de Samora Machel, das mais de 1.800 pessoas para lá enviadas, menos de cem saíram com vida. (Este tenebroso momento da história moçambicana foi reconstruído pelo português Francisco Camacho, em Niassa, e por Ungulani Ba Ka Khosa, em O reino dos abutres e Entre as memórias silenciadas).

Moçambique ocupa o sétimo lugar entre os países mais pobres do mundo e o 149º lugar entre 176 países analisados em termos de percepção da corrupção – ainda assim está melhor colocado que a Guiné-Bissau, que encontra-se em 165° lugar no ranking, embora, em termos de pobreza, situe-se ligeiramente melhor, em 13° entre os mais pobres do mundo. Desde sua independência, o país vive uma sucessão de golpes de estado, de tal forma que até hoje nenhum presidente eleito conseguiu terminar o mandato de cinco anos. Quanto a São Tomé e Príncipe, a pequena república com menos de 200 mil habitantes convive há muito com denúncias de corrupção e desrespeito aos direitos humanos. Em meio a esse cenário desalentador, Cabo Verde surge como uma espécie de oásis. O país detém o segundo melhor sistema educacional da África, estabilidade política e índice de percepção da corrupção mediano (41º lugar no ranking da Transparência Internacional), ainda que 35% da população seja pobre e 10% esteja na faixa de pobreza absoluta.

Quanto ao Brasil… Bem, quanto ao Brasil, país que conheço um pouco melhor que os outros até aqui tratados, a nossa é uma fatídica história. Por falta de acesso a uma educação de qualidade, humanista, os brasileiros possuímos um caráter eminentemente conservador; por nos faltar uma experiência duradoura com o sistema democrático, os brasileiros não nos percebemos como sujeitos da história, mas meros observadores; por convivermos com uma corrupção endêmica, que corrói todos os segmentos da sociedade, os brasileiros desconfiamos uns dos outros; por termos de nos equilibrar todos os dias sobre o profundo abismo social, os brasileiros nos tornamos insensíveis e egoístas; por havermos sido moldados pela violência – genocídio dos povos indígenas, escravidão dos africanos negros, exploração da mão de obra imigrante –, os brasileiros acreditamos que somente pela violência podemos solucionar nossos conflitos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, numa escala de zero a dez, a sociedade brasileira atinge a altíssima nota de 8,1 no Índice de Propensão ao Apoio de Posições Autoritárias. Foi por meio de um golpe político-militar contra o imperador Pedro II que nasceu a República em 1889; foi por meio de um movimento armado que Getúlio Vargas pôs fim à chamada República Velha, em 1930, e implantou uma ditadura civil em 1937; foi por meio de uma quartelada que instaurou-se a ditadura militar em 1964; e foi um golpe parlamentar que pôs fim ao governo de Dilma Rousseff em 2016. E, em todos esses momentos, o rompimento constitucional, embora liderado pela elite político-econômica, contou com o apoio ou com o silêncio da maioria da população. Contas feitas, ao longo do século 20 o Brasil desfrutou de breves momentos de democracia entre largos períodos de exceção.

O exercício da democracia pressupõe participação efetiva, ou seja, cidadãos livres que se engajam no debate público, alinhando-se a este ou aquele partido político, que tentará colocar em prática suas ideias ao alcançar o poder. Para isso, são necessários cidadãos livres, partidos políticos, ideias… Não são cidadãos livres aqueles que não possuem as condições mínimas de sobrevivência: moradia e alimentação. Calcula-se que o déficit habitacional no Brasil chegue a mais de seis milhões de famílias — e a insegurança alimentar atinge cerca de 52 milhões de brasileiros. Segundo pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), metade dos trabalhadores brasileiros, cerca de 44,4 milhões de pessoas, recebem, em média, o equivalente a 85% do valor do salário-mínimo vigente, 245 dólares, ou seja, algo em torno de 195 dólares por mês. Por outro lado, 889 mil pessoas (1% do total da população empregada) recebe, em média, quase sete mil dólares mensais. O Mapa da Desigualdade 2017 mostra que a expectativa de vida no Jardim Paulista, bairro de classe média alta de São Paulo, majoritariamente branco, é de 79,4 anos, enquanto no Jardim Ângela, zona Sul da cidade, predominantemente afrodescendente, é de 55,7 anos – uma diferença de 23,7 anos, a mesma que distingue um habitante da França, na Europa, de um outro de Zâmbia, na África. Por isso, ocupamos o vergonhoso 10º lugar no ranking dos países mais desiguais do mundo…

Não são cidadãos livres os que não podem circular pelo espaço público, por falta de segurança – o Brasil detém o tristíssimo título de país que mais mata no mundo, em termos absolutos, cerca de 60 mil assassinatos por ano, além de ser o quarto país do mundo em mortes no trânsito, outra forma de assassinato, 40 mil óbitos por ano, violência que pode ser observada nos contos de Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, ou nos romances Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Capão Pecado, de Ferrez, entre outros. Também é muito difícil ser um cidadão livre quem não tem acesso à educação formal, chave que abre as portas de uma leitura mais sofisticada do mundo. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, 27% da população brasileira é analfabeta funcional, ou seja, uma em cada quatro pessoas com mais de 15 anos não consegue entender sentenças simples. A má qualidade da nossa educação – ocupamos o penúltimo lugar no ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – explica a nossa alienação em relação às questões coletivas: sem acesso ao conhecimento temos dificuldade de compreender o mundo e, por consequência, de tentar mudar a realidade à nossa volta.

Partidos políticos, ou seja, agremiações que possuem um programa, com o qual os eleitores se identificam e que, portanto, os representam ideologicamente, na prática inexistem no Brasil. Segundo recente pesquisa CNI/Ibope, metade dos entrevistados não demonstra simpatia por nenhum partido existente. Para 72% dos entrevistados o voto é dado ao candidato, independentemente da sigla à qual ele esteja filiado. Ideias ninguém as têm. Os políticos brasileiros defendem interesses, não ideias. Segundo a mesma pesquisa CNI/Ibope, para oito em cada dez eleitores o mais importante de tudo é que o candidato de predileção acredite em Deus… Nesse sentido, a retórica, sempre vazia, tornou-se uma espécie de vestimenta que os políticos usam para se apresentar nos palanques. Dependendo do público, ostentam um ou outro discurso — que serve, apenas, para iludir as massas enquanto assaltam os cofres públicos. Em 2010, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) divulgou o documento Corrupção: custos econômicos e propostas de combate, que calculava em 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) o custo médio anual da corrupção. O relatório concluía que “o custo extremamente elevado da corrupção no Brasil prejudica o aumento da renda per capita, o crescimento e a competitividade do país, compromete a possibilidade de oferecer à população melhores condições econômicas e de bem-estar social e às empresas melhores condições de infraestrutura e um ambiente de negócios mais estável”. Um estudo realizado pelo Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, Suíça, constatou que, entre os 137 países que compõem seu Índice de Competitividade Global, o Brasil ficou em último lugar no quesito “Confiança do público nos políticos”, ou seja, a nossa percepção de que lidamos com a pior classe de políticos do mundo é verdadeira. (Realidade presente na antologia Sabe com quem está falando? – Contos sobre poder e corrupção, organizada por mim).

Em um livro destinado ao público norte-americano, Brazilian Literature – an outline, o escritor gaúcho Erico Verissimo afirmava: “O povo brasileiro (…) observava o jogo de seus políticos. Às vezes, seguia-os em muitas campanhas, enganado por promessas de sérias reformas no mundo político. Não raro, os brasileiros tomavam parte em revoluções, lutando pelos ideais expressos nos discursos de seus líderes. Mas logo se desiludiam outra vez porque esses mesmos políticos idealistas a quem haviam guindado ao poder ao preço de seu suor, sangue e lágrimas provavam ser tão egoístas, gananciosos e imerecedores de confiança quanto os antigos. E assim a indiferença e apatia — esses venenos que invadem o sangue dos brasileiros com tanta facilidade — tendem a ser o estado de ânimo natural de meu povo”.

Para finalizar, ficou pendente a pergunta: afinal, o que faz e o que pode a cultura para a preservação da democracia? Ora, a resposta a isso é simples. A cultura, tomada por qualquer ângulo, é repositório de conhecimento e alavanca de subversão – conforma em si, portanto, tradição e ruptura. Neste momento exato ouvimos, apreensivos, o barulho dos cascos da besta novamente retumbando pelos quatro cantos do mundo. A besta alimenta-se da ignorância, do ressentimento, da humilhação e da desesperança para espalhar o preconceito, a xenofobia, o racismo, o machismo, a homofobia. A cultura se contrapõe à barbárie. Se das trevas vemos ressurgir as ideologias fascistas, as mesmas que varreram o mundo na primeira metade do século 20, disfarçadas agora sob novas roupagens, é a luz da cultura que preserva o patrimônio humanístico da Humanidade e é a luz da cultura que guia a rebelião contra a loucura do mundo. Contra a intolerância que asfixia o diálogo, contra a opressão da mediocridade, contra o totalitarismo, seja de direita, seja de esquerda, é no espaço privilegiado da cultura que nos refugiamos. A cultura é a brasa que alimenta o fogo da democracia – a liberdade é o sopro que mantém a brasa acesa. Por isso, temos nós, os intelectuais, um compromisso tácito com o nosso tempo: cada um de nós, individualmente, e todos, coletivamente, devemos nessa hora tão difícil combater as forças obscuras que ameaçam os alicerces da democracia, única forma de sobrevivermos como entes autônomos, pensantes e autênticos”.

Luz na escuridão
Márcia Barbieri, contista, romancista:

“Fico extasiada quando o livro que passei anos gerindo é publicado, ao mesmo tempo, isso me abre a uma solidão incomparável. Publicar um livro é lançá-lo para longe e perder sua companhia, se assemelha em muito à perda de um animal de estimação, que está há anos acompanhando a família. A perda de uma narrativa sempre me impulsiona a outra narrativa, porque ainda não aprendi a ficar sozinha. Dessa dificuldade de lidar com a ausência nasce a ideia do romance em construção Tempo de cão. O romance discutirá as diversas relações que mantemos através de nossos corpos com outros corpos e com o mundo externo e como uma doença pandêmica pode perverter todas essas relações. O cenário é uma cidade que está sendo dizimada por um vírus e sofre com o crescimento vertiginoso do desemprego, da fome, da miséria e da violência. Os governantes, os quais deveriam ajudar a gerir os problemas causados pela doença, fingem que não está acontecendo nada e que não são responsáveis pela tragédia. Os homens, os quais deveriam se solidarizar com os seus semelhantes, tentam garantir a própria sobrevivência e pouco se importam com o crescimento assombroso do número de mortos, os quais começam a ser enterrados em trincheiras. Menino explana sobre a perversidade dos homens desconhecidos, já que é um estrangeiro e não pertence aquele clã, também discute como as relações de consanguinidade podem igualmente ser devastadoras e não são suficientes para trazer alento e afeto. Menino não vê salvação para o infortúnio do homem, nascemos rodeados de pessoas e morremos tragicamente sozinhos”.

Parachoque de caminhão
“Não se pode amar alguém mais do que a si mesmo. Ninguém consegue salvar quem não se salva sozinho.”
Cesare Pavese (1908-1950)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Carlos Drummond de Andrade
(Itabira, MG, 1902 – Rio de Janeiro, RJ, 1987)

O enterrado vivo

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

(Fazendeiro do ar, 1954)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho