šŸ”“ De vento em proa

Caímos do sexto lugar entre as maiores economias do mundo, em 2011, para o décimo-segundo lugar, em 2020. E o governo ainda conta com 24% de aprovação...
Ilustração: FP Rodrigues
25/06/2021

Circunspecto (a) leitor (a), nĆ£o sei se vocĆŖ lembra, mas em 2011 – 10 anos atrĆ”s! – o nosso Produto Interno Bruto – soma de todos os bens e serviƧos produzidos no paĆ­s – ultrapassou o do Reino Unido, nos posicionando entre as seis maiores economias do mundo. E caminhĆ”vamos retumbantemente para alcanƧar o quinto lugar, desbancando a FranƧa.

No entanto, isso nĆ£o ocorreu. Na verdade, daĆ­ para a frente, descemos, como se diz, em desabalada carreira: caĆ­mos para 9Āŗ lugar em 2015, e, após o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff – por favor, ā€œme diga vocĆŖ que estudou filosofiaā€, como solicita gentilmente o querido Tom ZĆ© na magnĆ­fica canção A babĆ”, qual foi mesmo o crime que ela cometeu? – temos navegado de vento em proa… Agora, no governo do, Deus que me livre e guarde, Jair Bolsonaro, chegamos ao 12° lugar, perdendo espaƧo para RĆŗssia, Coreia do Sul e CanadĆ”, e a perspectiva Ć© de que tambĆ©m sejamos ultrapassados este ano pela AustrĆ”lia.

Você pode estar aí pensando: e eu com isso? Pois é, traduzindo números em números, isso significa: mais desemprego, mais pobreza, mais violência urbana, mais concentração de renda, mais gente sem lugar para morar, mais gente passando fome, mais tensão social, mais intolerância, mais fanatismo, mais instabilidade política.

Então, eu me pego pensando com meus botões: como o desgoverno desse sujeito pode ainda contar com aprovação de 24% do eleitorado, segundo a mais recente pesquisa de opinião do Datafolha?

Luz na escuridão
Menalton Braff, romancista e contista:
ā€œEstou com um romance no prelo, Cenas de um amor imperfeito que, segundo o editor, vai sair agora no inĆ­cio do segundo semestre. Tomara que saia. Enquanto isso, trabalho desde janeiro num romance cujo tĆ­tulo provisório Ć© Uma vida Ć  deriva, que acompanha a vida de um homem mais ou menos absurdo Ć  Albert Camus, que desce pela ladeira social sem se abater, por julgar que tudo dĆ” na mesma.Ā Enquanto isso, continuo curtindo o Machado de Assis da Biblioteca Nacional, com meu AlĆ©m do Rio dos Sinos, lanƧado apenas onlineĀ pois um dia antes do lanƧamento in praesentiaĀ foi decretada a pandemia. Mesmo assim, o romance tem-me proporcionado algumas alegrias com a recepção dos leitores. Ɖ um romance de localização rural, cujo narrador Ć© urbano, ou seja, os dramasĀ humanos vividos nĆ£o sĆ£o ā€˜roceiros’, mas universais. Tenho dois contos no forno, mas tenho usado toda a lenha no romance, que nĆ£o quero atrapalhar. Ele terĆ” por volta de 50 capĆ­tulos e atualmente trabalho no capĆ­tulo 46ā€.

Parachoque de caminhão
ā€œA calĆŗnia Ć© uma arma ainda mais cruel que a espada, de vez que os ferimentos que produz sĆ£o sempre incurĆ”veis.ā€
Henry FieldingĀ (1707-1754)Ā 

Antologia pessoal da poesia brasileira
TomƔs AntƓnio Gonzaga
(Porto, Portugal, 1744 – Ilha de MoƧambique, MoƧambique, 1810)

Lira IV

JĆ”, jĆ” me vai, MarĆ­lia, branquejando
Loiro cabelo, que circula a testa;
este mesmo, que alveja, vai caindo
e pouco jĆ” me resta.

As faces vão perdendo as vivas cores,
e vão-se sobre os ossos enrugando,
vai fugindo a viveza dos meus olhos;
tudo se vai mudando.

Se quero levantar-me, as costas vergam;
as forƧas dos meus membros jƔ se gastam;
vou a dar pela casa uns curtos passos,
pesam-me os pƩs e arrastam.

Se algum dia me vires desta sorte,
vê que assim me não pÓs a mão dos anos;
os trabalhos, MarĆ­lia, os sentimentos
fazem os mesmos danos.

Mal te vir, me darĆ” em poucos dias
a minha mocidade o doce gosto;
verƔs brunir-se a pele, o corpo encher-se,
voltar a cor ao rosto.

No calmoso verão as plantas secam;
na primavera, que aos mortais encanta,
apenas cai do cƩu o fresco orvalho,
verdeja logo a planta.

A doenƧa deforma a quem padece;
mas logo que a doenƧa fez seu termo,
torna, MarĆ­lia, a ser quem era d’antes,
o definhado enfermo.

SupƵe-me qual doente, ou qual a planta,
no meio da desgraƧa que me altera:
eu também te suponho qual saúde,
ou qual a primavera.

Se dão esses teus meigos, vivos olhos
aos mesmos astros luz e vida Ć s flores,
que efeitos não farão em quem por eles
sempre morreu de amores?

(MarĆ­lia de Dirceu, Parte II, 1799)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim jÔ nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho