🔓 Da receção das literaturas africanas no Brasil

No Brasil há uma demanda reprimida pelas literaturas africanas de língua portuguesa, mas as editoras e a mídia continuam prisioneiras de Nova Iorque, Londres ou Paris
Ilustração: Thiago Lucas
23/05/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

O Brasil é o segundo maior país “negro” do mundo, depois da Nigéria. Do ponto de vista da sua composição demográfica, é particularmente tributário das populações originárias de Angola, de onde foram levados 80% dos homens escravizados que aportaram ao Brasil, assim como de Moçambique e outros países africanos que hoje também falam português (a colonização portuguesa comum explica).

Apesar disso, a maior nação de língua portuguesa do mundo é também das mais brancas e, em particular, “americanizada” do planeta. As próprias novas gerações de negros brasileiros, nomeadamente artistas e cientistas sociais, parecem inspirar-se e gravitar em torno da cultura e da academia norte-americana, como o demonstra a crescente preferência por estratégias estritamente identitárias para levar a cabo a necessária luta contra o racismo estrutural do país, em detrimento do humanismo africano, no qual, por exemplo, Mandela se inspirava. Para não falar da unificação entre visão identitária e perspetiva de classe, para mim imprescindível.

A receção das literaturas africanas no Brasil reflete e ressente-se dessas particularidades. Tal como as obras de autores negros brasileiros, salvo raras exceções, aquelas nunca mereceram uma grande atenção do sistema literário local. O facto é de algum modo contraditório, quando se sabe que certas correntes literárias brasileiras, como o modernismo e o chamado romance nordestino, inspiraram profundamente a formação das modernas literaturas de países como Angola, Moçambique e Cabo Verde, para só citar estes. Os dois factos – a não publicação regular de autores brasileiros negros e a fraca atenção às literaturas africanas – são certamente explicados pelo acima referido racismo estrutural do país.

De qual modo, é justo referir uma iniciativa da antiga editora Ática, de São Paulo, entre o final dos anos 70 e início dos anos 80 do século passado: a coleção de autores africanos de língua portuguesa que a mesma publicou, com a curadoria do professor de antropologia da USP Fernando de Albuquerque Mourão. Um desses chamados acasos da vida esteve por detrás dessa iniciativa: Fernando Mourão tinha frequentado, nos anos 50 e 60, a Casa dos Estudantes do Império em Lisboa, onde conhecera vários escritores das nações africanas de língua portuguesa ligados aos movimentos independentistas, com os quais se relacionou até ao fim dos seus dias. Porém, a iniciativa da Ática morreu e não teve qualquer continuidade posterior.

Entretanto, e mesmo não sendo regularmente publicadas no Brasil, as literaturas africanas de língua portuguesa atraíram a atenção da academia. Desde o final dos anos 70 e início dos anos 80, por impulso dos professores Maria Aparecida Santilli e Benjamim Abdala, ambos da USP, as mesmas passaram a ser estudadas nessa universidade, exemplo rapidamente seguido por outras universidades, em todo o país. A disciplina de literaturas africanas foi introduzida nos currículos dessas universidades e centros de estudos específicos para investiga-la e produzir novos conhecimentos científicos sobre a mesma. Depois de Maria Aparecida Santilli e Benjamim Abdala, outra geração de professores começou igualmente a debruçar-se sobre tais literaturas, entre os quais destaco, sem a pretensão de ser exaustivo, os nomes de Vilma Areas, Laura Padilha, Nazareth Fonseca, Rita Chaves, Tânia Macedo e Mário Lugarinho.

O interesse pelas referidas literaturas cresceu com as políticas públicas dos governos do PT, que, além da adoção das cotas “raciais” e de classe, estimularam também o interesse pelo estudo de questões relacionadas com a África. Hoje, em todo o Brasil, as literaturas africanas de língua portuguesa são estudadas em várias universidades públicas e privadas, tendo surgido, concomitantemente, novos professores da referida disciplina. O assunto é um bom tema de reportagem para a imprensa brasileira, genérica ou especializada em questões literárias e culturais.

Acrescente-se, porém, que, e mau grado muitos deles sejam estudados com regularidade em muitas universidades brasileiras nas últimas quatro ou cinco décadas, os escritores africanos de língua portuguesa continuam pouco publicados no país e, de um modo geral, são ignorados pela imprensa. As principais exceções não totalizam os dedos de uma mão: Mia Couto, Agualusa, Ondjaki. Os angolanos Luandino Vieira e Pepetela, quanto a mim, são menos publicados do que justificam. Uma autora importante, a moçambicana Paulina Chiziane, última vencedora do Prémio Camões, tem sido publicada por uma editora “negra” independente, a Nandyala, ignorada pela grande imprensa brasileira. De igual modo, a Kapulana tem publicado alguns autores moçambicanos. Outros autores angolanos e moçambicanos, como Zetho Gonçalves e Luis Carlos Patraquim, foram esporadicamente publicados. Mais recentemente, novos autores, como Kalaf Epalanga, Yara Monteiro e Djaimilia Pereira de Almeida, todos angolanos, foram igualmente publicados no Brasil.

Olhando para essa lista (incompleta), algumas curiosidades saltam à vista: a maioria dos autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, até agora, são angolanos, seguidos dos moçambicanos, havendo uma quase nula representatividade de caboverdeanos, guineenses e santomenses; salvo uma ou outra exceção, tais autores chegam ao Brasil via ex-metrópole comum (Portugal); e ultimamente, por fim, como que começa a ser necessário que tais autores sejam publicado por editoras multinacionais ou binacionais que atuam nos mercados português e brasileiro para chegar a este último (o caso mais evidente é o da Penguin-Companhia das Letras, mas há outros).

Cria-se, assim, uma situação um tanto esdrúxula: numerosos autores africanos de língua portuguesa são conhecidos no mundo académico brasileiro, onde são regularmente estudados e têm leitores, mas, por não serem levados pela mão de editoras binacionais ou multinacionais, com interesses em Portugal e no Brasil, ou não fazerem uso de estratégias de marketing pessoal, apenas encontram espaço nas editoras independentes ou nem isso, sendo completamente ignorados.

A que atribuir isso? Pessoalmente, não tenho dúvidas que o principal fator que explica o pouco interesse do “mercado” literário brasileiro (as aspas são imperiosas, pois se há um exemplo das profundas vinculações entre economia, estrutura social e ideologia é precisamente o mercado cultural em geral) pelas literaturas africanas de língua portuguesa é a natureza eurocêntrica (na realidade, cada vez mais “americanocêntrica”) das referências culturais das elites dominantes (ou seja, as que configuram e controlam o mercado) do maior país de língua portuguesa.

Alguns dos visados poderão argumentar que, nos últimos anos (recentíssimos, lembre-se), algumas editoras têm publicado autores africanos consagrados internacionalmente, na sua quase totalidade originários de países de língua inglesa e francesa. Isso está ligado, obviamente, ao boom das literaturas africanas, sobretudo a nigeriana. Mas – insisto nesse ponto – não desmente o viés eurocêntrico das escolhas feitas pelas principais editoras brasileiras. Para elas, parece ser preciso o aval de Nova Iorque, Londres ou Paris (ou Lisboa, num grau menor de importância), para que um autor africano seja publicado no Brasil.

Um último fator ajuda a entender, em todas as suas nuances, a problemática da receção das literaturas africanas no Brasil: o quase absoluto desinteresse da grande imprensa brasileira, generalista ou especializada, em relação a essas literaturas. O referido desinteresse não é demovido, sequer, quando autores africanos são publicados por editoras locais, independentemente do tamanho destas últimas. Só para dar dois exemplos recentes: nenhuma notícia que eu tenha lido (a falha talvez seja minha…) sobre a atribuição do Prémio Camões à moçambicana Paulina Chiziane mencionava o facto de ela ser publicada no Brasil pela Nandyala, do mesmo modo que, quando o senegalês David Diop venceu o International Book Prize, nenhum meio de comunicação lembrou que ele é publicado pela Nós. A quase inexistência, nos principais meios locais, de resenhas dos livros africanos publicados no Brasil corrobora, como se isso fosse necessário, o desinteresse a que me refiro.

A fechar, começo por reiterar uma perceção que tenho partilhado com vários amigos brasileiros: tenho poucas dúvidas de que existe, no Brasil, uma demanda reprimida pelas literaturas africanas, a começar, por razões mais do que óbvias, as de língua portuguesa. Assim, e existindo já, como escrevi atrás, uma massa crítica consolidada sobre essas literaturas, termino com duas sugestões: a primeira às editoras locais, para que recorram à consultoria dos numerosos especialistas existentes, sobretudo na academia, a fim de começarem a incluir nos seus catálogos mais autores africanos de língua portuguesa, incluindo alguns que já morreram, mas cujo conhecimento é fundamental; a segunda é dirigida aos jornais, revistas e outros mídias, para que solicitem a alguns desses estudiosos recensões regulares sobre as obras desses autores publicadas no Brasil.

Este ano, três grandes autores africanos de língua portuguesa fariam cem anos: o moçambicano José Craveirinha, prémio Camões de Literatura, e os angolanos Agostinho Neto e Aires de Almeida Santos. A obra de todos eles merece ser conhecida pelos leitores brasileiros. Alguma editora poderia começar a olhar para o lado, ao invés de continuar prisioneira do Norte?

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

Rascunho