Desde Quarup, a caudalosa e polifĂ´nica obra de Antonio Callado, a opressĂŁo contra os povos indĂgenas no Brasil nĂŁo era tratada de forma tĂŁo enfática em um livro de ficção quanto em Tom vermelho do verde, o mais recente romance de Frei Betto.
O tema não é novo, obviamente, mas o lançamento do livro, no final de 2022, coincidiu tristemente com o drama dos yanomamis, grupo que tem sofrido com a falta de cuidados do Estado brasileiro e também com a exploração ilegal do garimpo em suas terras.
Mas o romance começou a ser gestado ainda nos 1990, quando Frei Betto leu Massacre, um relato histĂłrico escrito pelo padre Silvano Sabatini sobre “o extermĂnio de uma expedição amadora irresponsavelmente autorizada pela Funai”. “AĂ me dei conta de que nenhum segmento da sociedade brasileira foi tĂŁo reprimido pela ditadura quanto os povos indĂgenas”, diz Frei Betto nesta entrevista ao Rascunho. “EntĂŁo passei a ler, durante anos, tudo sobre uma das nações mais atingidas: a dos waimiri-atroari.”
Trata-se de mais uma histĂłria de violĂŞncia contra os povos originários, negligenciada e ignorada pela sociedade brasileira: na dĂ©cada de 1970, a construção da BR-174 nas terras dos waimiri-atroari atinge catastrĂłficas e imprevisĂveis consequĂŞncias Ă medida que a floresta amazĂ´nica Ă© arrasada e seus povos originários sĂŁo dizimados.
No livro de Frei Betto, alguns dos momentos mais violentos vĂŞm Ă tona quando os indĂgenas sĂŁo instigados a falar sobre a histĂłria de seu povo durante as aulas do casal de educadores Doroteia e HelvĂdio. Os personagens foram inspirados no indigenista EgĂdio Schwade e em sua esposa Dorothy, que forneceram material sobre o massacre dos waimiri-atroari.
Com mais de 70 livros publicados, Frei Betto se diz um escritor “muito disciplinado”. “Reservo 120 dias do ano só para escrever.” A seguir, ele fala sobre sua produção e por quê, mais de 500 anos após o “descobrimento” do Brasil, continuamos a vilipendiar quem chegou aqui primeiro.
• Tom vermelho do verde se conecta de forma incrĂvel Ă realidade que vivemos hoje no Brasil ao tratar de um fato histĂłrico: a matança de um povo indĂgena nos anos 1970 por conta da construção de uma rodovia. Agora, vemos o drama dos yanomamis, morrendo por falta de cuidados do Estado brasileiro, por conta da corrupção e interesses financeiros do garimpo. Como esses dois fatos se conectam?
Conectam-se pela tragĂ©dia histĂłrica de a chamada civilização considerar os indĂgenas raça espĂşria a ser extirpada de nossa sociedade. Há muitas formas de dizimar povos originários, seja pelo massacre que descrevo em Tom vermelho do verde, seja pelo desamparo governamental que permite o garimpo e grileiros invadirem seus territĂłrios, explorar as riquezas ali encontradas e disseminar enfermidades.
• No livro, o start para a matança do povo waimiri-atroari foi a construção da BR-174 em suas terras. Hoje, os invasores são os garimpeiros e os madeireiros. A questão sempre foi econômica?
Sim, o que historicamente predomina Ă© a razĂŁo econĂ´mica. Mas há tambĂ©m razões de mero preconceito Ă©tnico, como descrevo em meu romance. Muitas vezes a cultura indĂgena foi considerada promĂscua por mera ignorância. Os colonizadores nĂŁo querem entender a diversidade cultural e insistem em impor sua visĂŁo de mundo, muitas vezes elitista e segregacionista.
• De que forma chegou ao tema do livro? E como foi a pesquisa para escrevê-lo?
Li em 1998 o livro Massacre, do padre Silvano Sabatini, um relato histĂłrico do extermĂnio de uma expedição amadora irresponsavelmente autorizada pela Funai. E me dei conta de que nenhum segmento da sociedade brasileira foi tĂŁo reprimido pela ditadura quanto os povos indĂgenas. EntĂŁo passei a ler, durante anos, tudo sobre uma das nações mais atingidas: a dos waimiri-atroari.

• Aliás, muitas outras histĂłrias de massacres indĂgenas sĂŁo “desconhecidas” de grande parte da população. Por que relegamos aos indĂgenas uma nota de rodapĂ© em nossa vida, principalmente nos dias de hoje, em que simplesmente ignoramos a existĂŞncia deles?
Porque nossos materiais didáticos folclorizaram os indĂgenas e jamais valorizaram suas culturas. SĂŁo vistos como indolentes, improdutivos, selvagens (no sentido de desprovidos de cultura e Ă©tica), quando de fato sĂŁo mais civilizados que nĂłs brancos urbanos.
• Percebe-se que há um trabalho minucioso de pesquisa no livro. Por que decidiu ficcionalizar a história e não optou por um livro de não ficção?
Porque me encanta escrever ficção e, assim, ter mais liberdade tanto no conteúdo quanto na estética. Foi o que Umberto Eco fez em O nome da rosa e Vargas Llosa no romance sobre Canudos, A guerra do fim do mundo.
• É interessante a ideia, no livro, de usar as aulas do casal de educadores Doroteia e HelvĂdio a indĂgenas para trazer Ă tona lembranças dos alunos sobre diversos assassinatos (inclusive com napalm) nas tribos. Como lhe ocorreu usar esse recurso para contar a histĂłria?
EgĂdio Schwade, indigenista, foi quem me forneceu material de primeirĂssima mĂŁo sobre o massacre dos waimiri-atroari. Dedico o livro a ele e a Dorothy, sua esposa, já falecida.
• Em um dos trechos, um militar faz o seguinte raciocĂnio: “Por que se confinar na caserna se havia tantos cargos a serem ocupados nas estruturas da administração pĂşblica?”. DĂ©cadas depois, foi esse o pensamento que dominou os militares no governo Bolsonaro?
Sem dúvida. Essa postura oportunista e aproveitadora predominou nas Forças Armadas na ditadura e no governo Bolsonaro. Milhares de militares tinham duplo salários, o da administração pública e o soldo da caserna.
• Por que parte da população ainda defende que os indĂgenas nĂŁo devem ter suas terras preservadas e que precisam se integrar Ă vida “moderna”?
Por total ignorância do que os povos originários representam como defensores e preservadores do meio ambiente e patrimônio cultural inestimável, dotados que são de uma cultura ancestral. Eles não precisam ceder ao consumismo para serem felizes.
• Você fez parte da equipe do governo no primeiro mandato do presidente Lula, no começo dos anos 2000. Há alguma chance de voltar a uma função parecida com que já exerceu, já que o Brasil regrediu no combate à fome?
Sou um feliz ING — IndivĂduo NĂŁo Governamental. Mas já disse a meu amigo Lula que estou disposto a colaborar como voluntário.
• Por sinal, o Brasil regrediu em diversas outras frentes: no meio ambiente, na educação, na saĂşde, nos Ăndices de emprego e renda… AlĂ©m disso, o governo Bolsonaro incentivou a circulação de armas e a violĂŞncia contra diversas minorias. Mas ainda assim, praticamente metade dos brasileiros votou em Bolsonaro nas Ăşltimas eleições. Como analisa esse fato?
NĂŁo me surpreende que parcela expressiva da população seja de direita. Vivemos sob hegemonia capitalista e 24 horas por dia sofremos, atravĂ©s da grande mĂdia e da publicidade, uma avassaladora deseducação polĂtica. Por isso Ă© muito importante que o governo Lula priorize a educação polĂtica do povo.
• Sua produção literária é impressionante, com mais de 70 livros publicados. Quanto de seu tempo é dedicado à escrita? E como organiza as ideias em relação aos gêneros literários, já que tem livros de crônicas, memórias, infantil, ficção e não ficção?
Sou muito disciplinado. Reservo 120 dias do ano sĂł para escrever. NĂŁo sĂŁo seguidos, mas sĂŁo sagrados. E sou um escritor compulsivo. NĂŁo passo um dia sem escrever algo.

• Um de seus livros mais conhecidos, Batismo de sangue, completou 40 anos da primeira publicação no ano passado. A obra fala sobre os horrores da ditadura militar nos anos 1970. Como vê o livro hoje, num contexto em que parte da população pede a volta dos militares?
Batismo de sangue é um documento contundente sobre as atrocidades da ditadura militar. Foi levado às telas de cinema pelo diretor Helvécio Ratton. Ainda hoje jovens se informam por ele do que significaram os 21 anos de obscurantismo imposto pela ditadura.
• Na condição de teĂłlogo, como analisa o discurso conservador de cristĂŁos que, de forma contraditĂłria, ignoram a condição de penĂşria de milhares de pessoas no paĂs?
É um discurso que nada tem de cristĂŁo, apenas manipula a linguagem religiosa para dar lustro ao seu Ăłdio aos excluĂdos e Ă naturalização da desigualdade social.
• Com o Brasil dividido, o que espera do nosso futuro breve? Essas diferenças podem ser diluĂdas a mĂ©dio prazo e o paĂs voltar a uma certa normalidade?
O Brasil, desde a invasĂŁo portuguesa, colonialista, Ă© um paĂs dividido. Enquanto houver tamanha desigualdade social, ou seja, luta de classes, o paĂs continuará dividido.
• Como viabilizar o mote “mais livros, menos armas”, propagado pelo presidente Lula, num Brasil tão desigual e com uma imensidão de analfabetos totais e funcionais?
Intensificando a alfabetização e o letramento, facilitando o acesso ao livro, valorizando mais a cultura e menos o entretenimento. E reprimindo com rigor a necrocultura e os espaços belicistas.